domingo, 3 de março de 2013

Em Foco: Os Vingadores e a psicanálise da vida familiar

*Artigo escrito por nossa colaboradora, Carolina Bittencourt 

Vocês já viram por aqui nossos textos mais abrangentes tratando de temas ligados às HQs, mas os dando um tratamento mais profundo, que chamamos de “Em Focos”, certo? Desta vez, temos aqui uma análise psicológica do impacto do filme dos Vingadores nos espectadores. Isso surgiu depois de uma amiga psicóloga conversar comigo dizendo que muitos pacientes traziam esse tema, o que a fez pensar em escrever sobre. Que o filme é sucesso de público, não há dúvidas, mas que tal dar uma olhada na visão disso através de uma psicanalista? Com vocês, as palavras de Carolina Bittencourt:

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“Durante o último ano, percebi muitas crianças e pais citando o filme durante seus atendimentos. Perguntaram-me mais de uma vez se eu o havia assistido, comentaram sobre os personagens e houve ainda uma ocasião em que um pai quis compreender a preferência de seu filho por filmes de super-heróis. Postei sobre essa observação no Facebook e minha grande amiga (Cammy), editora desse site, convidou-me para escrever sobre assunto. Fiquei lisonjeada com o convite, mas preocupada com a recepção do mesmo pelos fãs de HQs já que, apesar de me interessar pelos filmes e desenhos animados da Marvel, não sou uma leitora. Por isso, o presente texto foi realizado com a consultoria dela e peço desculpas por eventual falta de profundidade no assunto, no que diz respeito à história dos quadrinhos. A ideia aqui é buscar uma leitura psicanalítica para o sucesso de bilheterias de ‘Os Vingadores’, especialmente entre pais e filhos.

A psicanálise, para quem não sabe, é uma teoria psicológica do inconsciente. Ou seja, trata-se de uma teoria da mente embasada no pressuposto de que há sempre algo inacessível a nossa consciência. Algo relacionado a desejos sexuais recalcados, inaceitáveis pela ordem social vigente. Dessa forma, a sexualidade é considerada como algo para além do ato sexual, compreendendo toda forma de obtenção de prazer. Apesar dos conteúdos inconscientes não poderem ser abordados diretamente, é possível verificar suas manifestações através de sonhos, atos falhos, etc. Neste contexto, as produções culturais seriam tentativas de elaboração da experiência humana e consequentemente, de suas questões inconscientes também.
 
O sucesso dos super-heróis em nossa cultura parece poder ser relacionado, por exemplo, ao conceito psicanalítico de onipotência infantil que é vivenciada pelo bebê, ser em total dependência, através da satisfação de suas necessidades básicas para sobrevivência.  Como seu ser ainda está misturado com os de seus adultos cuidadores, ele não diferencia entre o benefício decorrente da ação de seu cuidador e o que foi causado por seu grito ou gesto. Desse modo, o bebê acredita que tanto ele quanto seus pais possuiriam ‘super-poderes’. A figura do super-herói, neste contexto, poderia representar o saudosismo dessa nossa tenra idade em que tudo parece ser possível e nossos pais são todo-poderosos.

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Os super-heróis da Marvel, especificamente, apesar de possuírem super-poderes, apresentam características humanas, criando maior proximidade e identificação com seus fãs e podendo explicar a sua popularidade com o público adulto. Porque se as crianças são as mais impressionadas com os super-poderes dos personagens, são os adultos os que mais se divertem com as piadas dos super-heróis durante o filme. Neste contexto, segue abaixo a análise psicanalítica dos principais personagens da trama que pode auxiliar na compreensão da popularidade do filme do ponto de vista psicanalítico:



Bruce Banner /Hulk

Ele está dividido em dois: um gênio cientista que tenta controlar sua agressividade a qualquer custo e 'o outro cara', uma criatura verde de força fenomenal, totalmente refém de seus impulsos agressivos. O ser humano, de acordo com a psicanálise, é um ser fundamentalmente dividido.  De um lado, há a consciência e as convenções sociais que o permitem viver entre os demais. Por outro lado, existe o inconsciente, as forças desconhecidas de nossos impulsos sexuais e agressivos que tentam vencer o recalque e serem satisfeitos de alguma forma, seja pela fantasia ou pela realidade.

Neste sentido, a figura do Hulk seria admirada pelas crianças pela possibilidade de obterem satisfação de seus desejos a partir da força agressiva. Estratégia essa muito utilizada por elas que ainda se encontram em processo de formação, não possuindo as regras sociais suficientemente internalizadas e por isso encontram nos gritos, tapas e mordidas formas de expressarem o que querem. Já os adultos se identificam com o dilema enfrentado pelo personagem entre ceder ou não ceder à agressividade, encontrando no Hulk a possibilidade de ceder à agressividade destruidora que há dentro de cada um de nós.


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Thor e Loki

Irmãos de criação, eles são personagens retirados da mitologia nórdica, sendo Thor extremamente forte e responsável pelos  trovões, relâmpagos, tempestades, árvores de carvalho, força, proteção da humanidade e também a santificação, cura e fertilidade. Enquanto Loki seria o deus associado ao  fogo, à trapaça, à travessura e à magia. Como se sabe, a mitologia surgiu como forma de explicar a humanidade e o mundo através de narrativas baseadas em tradições e lendas. Dessa forma, a principal questão representada pelos dois deuses no filme é o relacionamento entre irmãos. Freud nos explica que a relação fraternal é marcada por uma ambivalência de sentimentos. A chegada de um irmão representa, para o bebê, a perda do amor exclusivo de seus pais. Porém, além disso, o vínculo entre irmãos favorece as identificações, compartilhamentos de referências e aprendizados.

Verifica-se que, durante todo enredo, Thor apresenta um respeito pelo irmão, mesmo Loki se configurando como o vilão da história e tentando persuadi-lo de sua ideia de dominar o mundo, até o final. Entretanto, ao procurar possíveis referências para escrever este texto, deparei-me com um artigo que mencionava a polêmica gerada pela piada em um trecho do filme que justificava as maldades de Loki por ele ser irmão adotado de Thor. De acordo com a definição psicanalítica de projeção, tendemos a projetar o que julgamos inaceitável em nós mesmos nos outros. Por isso é mais fácil para Thor justificar a crueldade de Loki pela sua adoção, negando qualquer tipo parentesco com o mesmo, do que se dar conta de que talvez ele tenha alguma responsabilidade pelo mal causado pelo vilão.

Observamos, desse modo, que o filme consegue caracterizar a ambivalência do relacionamento entre irmãos destacada por Freud. Isso se daria através da figura de Thor que ora tenta chegar a um acordo com Loki, ora o desconsidera da própria família. Mas, que ao final, torna-se responsável por levá-lo a Asgard para ser julgado e punido pelos crimes cometidos.  Assim sendo, mais uma vez a identificação do público tanto adulto quanto infantil que sempre está sujeito a conflitos fraternais em suas famílias.

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Tony Stark/Homem de Ferro

Ele foi reprovado na avaliação de personalidade da agência S.H.I.E.L.D., por ser ‘volátil, auto-obsessivo e não jogar bem com os outros’. Essas características estão, em certa medida, presentes em todos os seres humanos, especialmente durante a infância, já que nesse período ainda acreditamos que o mundo gira ao nosso redor e que outros são uma extensão de nós mesmos (o que, anteriormente, foi explicado pelo conceito de onipotência infantil). Porém, sabemos que é um desafio para vida inteira aprender a lidar com as diferenças e a dosar o narcisismo decorrente da vivência infantil.

Sua reprovação inicial, entretanto, não o impediu de ser convocado para os Vingadores graças a sua genialidade empresarial e científica. Além disso, ao longo do filme, ele aprende a trabalhar em equipe e a considerar a potencialidade de seus companheiros. Especialmente de Bruce Banner, ao afirmar que ele teria sido salvo por Hulk e sua agressividade descontrolada no acidente radioativo que gerou seu poder, o que Banner em si considerava um defeito. E de fato, Hulk é quem garante a vitória dos Vingadores. O que sustenta a ideia de que em tudo há vantagens e desvantagens.

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 Steve Rogers/Capitão América

O personagem surgiu na época da II Guerra Mundial para aumentar a autoestima americana durante o conflito. Ele era um rapaz franzino e com problemas de saúde que possuía um grande potencial para o heroísmo. Dessa forma, aceita participar de experimento para se tornar um supersoldado e lutar contra os nazistas. Porém, ao final da guerra, após sua queda de um avião, permaneceu congelado nas últimas décadas. Sua convocação para os Vingadores é explicada pelo agente Coulson: ‘As pessoas precisam de algo antiquado’. 

O que poderia ser mais antiquado que um capitão no mundo atual, em que não há limites, valores e ideologias absolutas para se seguir? No entanto, percebe-se que certo direcionamento é necessário para se posicionar diante dos impasses do dia-dia. No filme em questão, Steve Rogers torna-se o líder da equipe por solicitar foco dos demais e coordenar as ações em grupo. Traçando um paralelo com a vida familiar, ele poderia representar a autoridade que os pais deveriam representar diante de suas crianças, ao impor limites e regras que facilitem a introdução dos filhos na vida em sociedade.

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Podemos chegar à conclusão, então, pela análise psicanalítica dos principais personagens de ‘Os Vingadores’, que o sucesso do filme entre pais e filhos poderia ser explicado pela identificação destes com os conflitos e questões apresentadas pelos super-heróis que mesmo possuindo superpoderes, não estariam imunes aos problemas humanos relacionados aos laços sociais, ao mesmo tempo em que, por se tratarem de super-heróis, eles apresentam a possibilidade da resolução das questões humanas sem abrirem mão da onipotência infantil. Ou seja, eles representariam o nosso contraditório desejo de crescer, permanecendo com os superpoderes de nossa infância.


Carolina Bittencourt”

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