Essa é apenas a primeira semana de estreia de Vingadores: Era de Ultron pelo mundo e já podemos considerar que a sequencia da maior franquia da Marvel Studios é um estouro. Mas é claro que com as coisas indo para a telona, muita gente tem questionado como foi levada a adaptação dos novos personagens e, principalmente, do vilão. Mesmo ciente de que as coisas não poderiam se dar da mesma forma, sempre há quem questione como as coisas se ajeitam pra midia dos cinemas. O problema é que pouca gente sabe ou reconhece que ela é muitas vezes mais perto dos quadrinhos do que pensávamos de imediato. Aqui, duas questões foram levantadas mais que todas: Sobre o novo criador do vilão e seu comportamento humano, muitas vezes infantil.
Então, vamos começar o nosso dever de casa aqui. Quem quiser nos acompanhar, há uma leva boa de recentes encadernados lançados que vai ajudar bastante. Incluem-se as duas últimas coleções históricas relacionadas aos Vingadores, um encadernado da Salvat com o célebre arco Ultron Ilimitado e uma história do Homem de Ferro que saiu a pouco pela Panini: Síndrome de Frankenstein.
Nos quadrinhos, Ultron é criação direta do Hank Pym. Não há como negar isso. Coincide com uma época conturbada da vida do bom Doutor, que começou logo depois a ter problemas de dissociação da realidade e esquizofrenia. Quando Ultron surgiu, ele já havia reconstruido seu quinto corpo, Ultron V, e somente mais tarde, por meio de flashback, conheceríamos a versão 1 que parecia mais uma caldeira gigante e enfezada do que um robô. Nunca chegamos a ver de fato a versão II a IV.
Nessa época, Ultron era definido como "o automato vivo". Seria o mais próximo pra definição que hoje temos de Inteligência Artificial, ou a sigla, I.A. Até então, não tínhamos conhecimento de que ele emulava os padrões mentais do próprio Hank, mas já havia muito do complexo de Édipo no personagem ao se referir ao seu criador e nas tentativas de destruir seus amigos, os Vingadores. Até então, não havia nenhum plano grandioso de exterminação em escala global.
Aqui, então, vem um paralelo direto com o filme. Mesmo não conhecendo as versões intermediárias entre a I e a V, percebe-se de cara que ele tenta se aproximar de um corpo humano e sempre se aperfeiçoar mais. No filme, é importante prestar atenção nos primeiros momentos de vida de Ultron. Ainda sem corpo, ele nasce sem forma física e sem saber onde está ou o que está vendo. Ele questiona onde está seu corpo e acha errado não ter um. Assustado e exaltado, ele ataca J.A.R.V.I.S. para ter acesso a Legião de Ferro e criar pela primeira vez uma forma. Os mais atentos perceberão que ele toma o corpo do Legionário-5.
É importante dizer aqui o porquê dessa necessidade de possuir um corpo humano. O que você deve atentar é que no primeiro momento que uma I.A. de verdade surgir e criar a consciência do "Eu" não vai ser muito diferente do que alguém despertar de um coma com memórias perdidas. Mas diferente de nós, ela vai poder ter acesso a um volume intenso de informações no ato e a primeira coisa que vai se dar conta é de ela é "viva", mas fisicamente não existe. E todo o nosso mundo ao redor é moldado para nossas necessidades físicas como seres humanos - Sentir, tocar, cheirar, enxergar... Fazendo um rápido paralelo, a nova I.A. seria como um fantasma, que apenas tem conhecimento dessas coisas, mas não pode usufruir delas. Seja por frustração ou curiosidade, a lógica natural é que ela tente a todo custo criar um corpo para também ter acesso a todas essas coisas.
Nos quadrinhos, a necessidade de Ultron se humanizar vai mais além. Ainda em sua quinta forma, Ultron-5 cria um "filho" ainda mais perfeito que chamaria de Visão. E lá pra versão 8, numa paródia clara a noiva de Frankenstein, ele recria a sua versão feminina, Jocasta. O complexo de Édipo de Ultron aqui fica ainda mais evidente quando na sua tentativa de criar Jocasta ele captura Janet Van Dyne, esposa de Hank Pym, e quer que sua mente sirva de padrão mental para o corpo da nova robô. Mais tarde, uma outra potencial noiva robô surgiria na forma de Alkhema, criada por Ultron-14 e com os padrões mentais da Harpia desta vez. Essa versão, no entanto, é mais voraz e psicótica, mas no fim não deixa de ter um traço humano também. Mais pra frente, um outro filho, ainda com o perfil mais humano surge nas páginas dos Fugitivos: Victor Mancha, que por muitas vezes até mesmo os leitores esquecem sua natureza robótica de tão humano que ele é.
Mas a confusão mental de Ultron sobre sua existência e sua humanidade vai muito mais do que se reconhecer com um corpo físico ou mesmo criar outros de seus iguais. Depois de servir como marionete do Doutor Destino durante as Guerras Secretas, a versão 12 foi programada para atacar o Demolidor e num nítido momento de confusão e desconforto por ter todas personalidades das suas versões anteriores neste novo corpo, ele começa a tentar se mutilar pra eliminá-las. É muito curioso ver aqui sua busca para ter alguma integridade, um só "eu". Ao querer consertar esse problema, ele se refere a isso ao equivalente da palavra "felicidade". Não tem como fazer paralelo aqui a um comportamento muito similar a loucura humana querendo sanidade.
Mais tarde, durante a fase dos Vingadores da Costa Oeste, a versão 14 do Ultron simplesmente desenvolve um sentimentalismo exarcerbado, por vezes, adolescente, ao ponto de até mesmo tentar se atrelar a Hank Pym como sendo seu "pai" de fato. Essa mesma versão, acreditem no que digo, chegou até mesmo a apresentar estranha compulsão e mesmo sintomas equivalentes ao de alcoolismo. Mais tarde, a versão do Ultron-15 referiu-se ao seu antecessor como um anomalia, mas seus planos ainda pareciam ter como cerne principal o ódio ao criador, Pym, e seus entes mais próximos - Jocasta, Vespa, Visão e Feiticeira Escarlate. Essa versão, por sinal, aparece numa saga chamada Ultron Ilimitado que provavelmente inspirou bastante o filme, já que ele toma um país do leste europeu chamado Slorenia, recria seu corpo de puro adamantium e tem um exército de outros ultrons ao seu comando.
Ainda dá pra observar mais dessa busca de Ultron pela humanidade em histórias mais recentes. Em Poderosos Vingadores, num arco escrito por Bendis e desenhado por Frank Cho, Ultron invade a armadura/corpo do Homem de Ferro e o remodela na forma de uma mulher muito similar a Janet Van Dyne, numa clara implicação de que aquele é objeto de seu desejo. Mais para frente, no mesmo título, só que numa história feita por Dan Slott, ele assume um dos corpos da Jocasta e se autodenominada Ultron-Pym. Seus planos aí são matar o seu "pai" e substituí-lo, num claro Complexo de Édipo. Por fim, num Graphic Novel mais recente e inédita no Brasil, Rage of Ultron, vemos uma nova etapa nesta obsessão de Ultron para conquistar sua humanidade e se vingar de seu "pai".
Apesar de todo o seu doentio vínculo com Hank Pym, Ultron já teve outros que acabaram se envolvendo diretamente ou indiretamente em sua reconstrução. É aí que entra Tony Stark como o segundo personagem da Marvel a ter mais relações com o vilão do que qualquer outro. A versão 9 teve seu corpo construído por Tony, que foi hipnotizado pela versão anteriora pra fazer isso. Nos anos 2000s, o Ultron-18, que só tinha sobrado a cabeça, se mesclou a antiga armadura senciente do Homem de Ferro e acabou se tornando o líder de um culto religioso, Filhos de Yinsen, que pretendia dominar os humanos abusando da fé. E como já dito, Ultron até mesmo já se apossou de seu corpo/armadura pra criar uma versão feminina "humana" de Ultron.
Até mesmo para quem acompanha os desenhos animados, fica evidente que há uma tentativa da Marvel em dar ao Homem de Ferro a paternidade de Ultron já faz alguns anos. O desenho Next Avengers foi o primeiro caso e explorou muito bem um futuro distópico dominado pelo robô e que serviu de base para a Era de Ultron nos quadrinhos. Em Vingadores: Mais Poderosos da Terra, o desenho divide a co-criação entre Stark e Pym, cada um contribuindo com seus conhecimentos para tal. E nem preciso falar do atual Avante, Vingadores! que já admite Tony como "pai" de Ultron assim como nos cinemas.
Depois de Tony Stark, alguns outros foram também responsáveis por versões, reprogramações e upgrades do vilão. Entram aqui o Doutor Destino nas Guerras Secretas e Atos e Vingança; O inumano Maximus que usou o corpo do robô Omega pra criar um Ultron gigante; Até mesmo um Destinobô já pôs as mãos em Ultron.
Portanto, quando caímos no filme de 2015, temos aí essa leva de informações tão ricas sobre o personagem que seria até injusto não usar na adaptação. Em muitos aspectos, era mais fácil explicar a I.A. como uma cria do bem conhecido engenheiro Tony Stark do que bioquímico Hank Pym ainda por surgir. Os elementos já colocados em outros filmes do personagem de Robert Downey Jr automatizar as suas armaduras nos cinemas já tinha até mesmo um paralelo com a armadura senciente (mais tarde até dominada pelo próprio Ultron) nos quadrinhos. E por fim, o toque final estava em fazer um paralelo dos padrões mentais que o Ultron Cinematográfico copiaria, o que deu um excelente plot na linha de "tal pai, tal filho" em colocar a obsessão por controle nos dois: Stark e Ultron.
É obvio que há muito ainda o que se falar aqui, principalmente se quisermos analisar a questão das I.A.s sobre a perspectiva do novo Visão e a diferença de ambos graças a seus protocolos iniciais. Vingadores: Era de Ultron, mesmo sendo antes de mais nada um puro blockbuster de ação, levanta de uma forma bem curiosa essas questões, e ouso dizer até, de forma mais consciente de que outros filmes já feitos na linha. Portanto, não estranhe em dado momento você se sensibilizar pela causa do robozinho tão expressivo ou achar muito juvenil uma birra do mesmo ao ser comparado com Tony Stark. Já estava tudo lá, tudo isso já tínhamos de certo modo nos quadrinhos.
Coveiro