domingo, 20 de novembro de 2011

Em Foco: A negra jornada do heroísmo com rosto negro

*Artigo escrito por nosso colaborado, Fábio Cabral
*Artigo contém alguns spoilers no penúltimo parágrafo!

Marvel Concienscia Negra

São muitas as faces do heroísmo, da mesma forma que somos todos diferentes em nossas cores, sentimentos e individualidades. Sim, somos todos iguais... na proporção de nossas desigualdades. Diversidade étnica e cultural é fato concreto, ainda que vozes obtusas tentem convencer a si mesmos do contrário; e entre nós, caras humanos, há esses de pele escura e rosto negroide, aos quais esse tal Dia da Consciência Negra tem algo a dizer. Da forma como enxergo, não é uma data para comemorar, colorir ou orgulhar, e sim lembrar, pensar, resgatar e... entender. Somos heróis escuros em uma negra jornada, e pedimos permissão para iniciar os trabalhos.

“Isso é besteira! O preconceito vem dos próprios negros!”

Não há palavras suficientes para mensurar o trauma afro-descendente. Durante mais de 300 anos, foram milhões de vidas humanas arrancadas de seus lares como se fossem mato e transportadas como se fossem lixo. Em números modestos, de 30 a 60 milhões de negros africanos foram escravizados durante o período do tráfico negreiro em escala mundial; desse total, um terço morreu em terra, antes mesmo de embarcar, devido a atos de resistência, de crueldade, de covardia, enquanto outro terço morreu durante a Travessia, a sinistra passagem pelo Atlântico. Um verdadeiro holocausto, um genocídio sem precedentes na história moderna e contemporânea.


Marvel Concienscia Negra
A escravidão nos quadrinhos


E assim se inicia mais um jornada do herói com rosto africano.

Os mitos e lendas são muito mais do que simples estórias de entretenimento; por meio de metáforas e belas palavras, essas estórias heroicas nos inspiram e incentivam a encarar a aventura da vida. Ora, também são nossos os desafios enfrentados pelo herói, pois este representa nossa luta diária por amadurecimento, crescimento, conquistas, prazer e sabedoria, superando as dores, frustrações, desilusões.

Portanto, a monstruosa Travessia pelo Atlântico, nossa luta contra a escravidão e nossa batalha diária por igualdade e reconhecimento é nossa negra jornada, nós, os heróis com rosto negro, jornada iniciada por nossos ancestrais arrancados de seus lares rumo ao desconhecido, esses bravos que sobreviveram ao chamado da aventura, que resistiram à dominação e às tentativas de destruição de sua cultura, de seus saberes e de sua espiritualidade, e que ainda estão aqui, estamos aqui, negros rostos e iluminadas almas, resistindo a preconceitos, ridicularizações, descaracterizações, xingamentos, desmantelamentos. Nossa jornada continua, enquanto nos lembrarmos do que somos e tivermos força para lutar pelo que queremos.

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Graphic Novel Deus Ama, o Homem Mata, por Claremont traz atentados contra duas crianças mutantes negras com características bastante similares ao que era visto praticado pela KKK não muito distante desta época.



“Ah, cala boca, seu carvão! Suco de asfalto! Grafite! Macaco!”

Uma criança jamais deveria ouvir tais insultos... mas ainda há vozes obtusas para proferi-las. Já foi dito aqui que os mitos, contos e estórias sobrenaturais de seres descomunais não apenas nos entretêm, como também nos inspiram e nos encantam, nos dão forças para crescer e amadurecer; ora, se a raça humana nasceu em África, é um óbvio ululante deduzir que lá surgiram as primeiras estórias fantásticas, contadas ao redor da fogueira em noites repletas de estrelas, quando a estrutura do mundo era diferente do panorama eurocêntrico de hoje.


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Em Fabulosos X-Men 279, Xavier consegue salvar uma criança negra de ser linchada por um mutirão que teve sua fúria amplificada pelo Rei das Sombras.

Por exemplo, entre os ambundos de Angola havia a estória de Sudika-mbambi, aquele que já falava antes mesmos de nascer, proferindo os versos de poder que anunciavam o seu destino; enquanto os pais e toda a aldeia eram atacados por ogros makishis devoradores de gente, Sudika-mbambi nasceu já armado com espada e bastão, e graças aos seus incríveis poderes deu cabo dos monstros, e saiu mundo afora para resgatar o restante dos aldeões raptados pelos monstros. Um resumo mais completo desta estória pode ser lido aqui, enquanto aqui você pode ler sobre a Viagem de Kwasi Benefo.

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Deuses Africanos retratados nos quadrinhos

E hoje, com um milhão de culturas criadas por nossa raça humana, é impressão minha ou vivemos todos sob os ditames de um único paradigma dito ideal e adequado a todos? Bom, más lembranças de xingamentos na infância não pareceram algo muito adequado... Mas aí alguém se lembrou de que os heróis descomunais desta época contemporânea, que tanto nos inspiram e comovem, precisavam de representantes de pele negra... já que apagaram da história nossos grandes reis e rainhas, guerreiros e feiticeiras, caçadores e sacerdotisas que foram heróis no negro continente.

Gosto muito das estórias da editora Marvel primeiramente pela grande diversidade cultural e étnica. Ainda que haja umas mancadas aqui e ali – Mancha Solar falando espanhol? – e que haja um fedorzinho discreto de politicamente correto, ainda hoje a Casa das Ideias é um exemplo no que diz a representação global dos povos.

Pois é, pra começar, temos um brasileiro, Mancha Solar, da primeira geração dos Novos Mutantes, surgida nos anos 90; moleque preto carioca que adora futebol, herdeiro da fortuna do papai. Não é nem de longe um oh!, nossa que exemplo de personagem!, mas ao menos teve participação em quase todos os grandes momentos dos Novos Mutantes e continua ativo até hoje. E não solta mais exclamações em espanhol!

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O brasileiro Mancha Solar

Agora, vamos voltar um pouco, para o fim dos anos 60. Pantera Negra, né? Se não estou enganado, é o senhor primeiro preto heroico da Marvel! Um senhor africano no pináculo da capacidade humana, um intelecto de nível genial – oh!, um preto pensante! –, governante de uma nação africana que é um híbrido de alta tecnologia e espiritualidade ancestral... pena que Wakanda não existe de verdade! T'Challa é o pioneiro, um personagem de suma importância para o universo heroico negro; contudo, ainda assim, sou obrigado a admitir que o personagem nunca me chamou muita atenção. Acho que falta... carisma, talvez. De qualquer forma, ele é o primeiro de todos!

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Tchalla, o herói negro pioneiro na Marvel

E o Luke Cage? Começou a carreira como o Capitão Clichê – preto dos guetos, acusado de crime que não cometeu e jogado na cadeia, fala gíria e palavrão, etc. –, era chatinho e sem graça em suas primeiras estórias... e hoje é um dos melhores e mais picudos personagens da Marvel! É difícil encontrar hoje algum leitor que não se renda o carisma do cara; é simplesmente espetacular aquele episódio em que foi tirar satisfações Norman Osborn por ter agredido sua esposa Jéssica e surra o vilão na frente do mundo inteiro, forçando-o a revelar sua identidade criminosa de Duende Verde! Por sinal, o cara não tá nem aí se a mulher é preta, branca, vermelha ou verde; traçou quem quis, cansou-se da vida de putão, casou-se com a joia Jessica Jones, teve filha com ela e acabou. Pra fechar, como sinal de macheza insuperável e magnânima, Cage usava uma roupinha amarela ridícula, com tiara brilhante e tudo, e ainda intimidava o inferno. Grande Cage!

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Luke Cage, o campeão do Bronx

E que tal o Irmão Vodu, que mostrou ao mundo o poder da macumba haitiana e se tornou o novo Feiticeiro Supremo? E a Misty Knight, heroína mercenária das antigas com aquele black power arrasador? Ou o picudo do Máquina de Combate, que é bem mais do que um Homem de Ferro de segunda mão? Ou a Capitã Marvel, poderosa pra cacete e abandonada pra diabo pelos roteristas? Ou o Blade, que todo mundo só se lembra mesmo por causa dos filmes? Ou o Falcão que... bem, esse é meio mané mesmo.

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Blade, Irmão Vodu e Máquina de Combate

Mas começou a aparecer preto pra valer é a partir dos anos 90, principalmente entre os mutantes; de Larval a Cecília Reyes, passando por Bishop e sua irmã Lasca, Sincro (Geração X), o já citado Mancha Solar, Prodígio, Frenesi, a delícia suprema que é a Monet, uma certa luz mutante da Nigéria... (não é spoiler, só o nome dela ainda não apareceu!)

E agora, o que todo mundo já sabia: na minha apaixonada opinião, o maior herói negro dos quadrinhos é a rainha Tempestade. Não tenho palavras suficientes e adequadas para expressar toda minha admiração e adoração que nutro pela personagem. Para início de conversa, além de preta, é mulher; agora tentem imaginar uma mulher negra, de personalidade forte, liderando um poderoso e popular grupo de super-heróis nos anos 80; ponto total para a ousadia dos roteristas! E está longe de ser apenas isso.

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A Deusa

Ororo é um exemplo de integridade, caráter, sabedoria e força, uma das únicas a manter intactas tais características e ainda assim evoluir como personagem ao longo de tantos anos. Nunca se corrompeu, jamais se rebaixou. Nunca fraquejou. Detentora de um poder imenso, mas que nunca lhe subiu à cabeça. É uma deusa em meio às formigas, e completamente ciente de sua mediocridade como ser humana. Possui um carisma elétrico e grandioso, que parece não ter enfraquecido com o tempo. Se sua mutação continuar evoluindo, provavelmente se tornará um ser elemental, uma deusa, conforme já foi sugerido em um mundo alternativo. Tempestade é que é a verdadeira rainha da espécie mutante! É uma líder de verdade, um exemplo de heroína, um exemplo de ser humano. Minhas palavras são rudes e insuficientes para descrever toda a magnitude da rainha Ororo Iqadi T'Challa.

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O Casal Real de Wakanda

Opa, comunicado de última hora! Pedimos desculpas pelo SPOILER, mas... é de grande importância. No universo Ultimate, o Homem-Aranha atual é Miles Morales, um jovem negro de ascendência latina. Ainda que seja num universo alternativo, esse é um passo sem precedentes na Marvel, muito mais do que um Nick Fury preto; afinal, trata-se de um dos personagens mais populares da franquia, senão o mais famoso, um dos carros-chefes da editora. Quando foi divulgado que o novo Homem-Aranha seria negro, os meios de comunicação vomitaram a notícia por todos os cantos possíveis e imagináveis, e as reações foram... duras. Em todos os sites e fóruns em que a notícia foi vinculada, cuspiram-se duras críticas contra a decisão da Marvel, houve acusações de “politicamente correto”, “forçação(sic) de barra”, “descaracterização do herói” e outras palavras bem menos gentis. Estranho é que não houve tamanha começão quando, por exemplo, o Batman foi substituído por um tempo por um assassino violento... e loiro. O ponto que ocorreu todo um excesso de críticas cruéis e indignações ilegítimas, tudo isso antes mesmo de as novas estórias serem publicadas! Só porque se trata de um Homem-Aranha de um universo alternativo e não do principal! – se bem que a maioria das pessoas não vê diferença... E eu só lamento os haters, porque as estórias do novo Homem-Aranha escritas pelo Michael Bendis estão muito, muito boas, a maioria das críticas foram positivas, dessa vez. Mas custava ler antes de vomitar bosta sem sentido? É tão problemático assim o cara ser preto? Longa vida a Miles Morales!

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Miles Morales, latino e negro, o novo Homem-Aranha Ultimate

A jornada dos heróis com rostos escuros está longe de terminar. A viagem continua, enquanto nos lembrarmos quem somos, o que fomos e o que poderemos ser. As culturas e bravuras de nossos antepassados permanecerão vivas e ganharão novas cores conquanto que façamos ouvir nossas vozes, conquanto que superemos nossas limitações, dores e angústias, para alcançarmos a autorrealização genuína, a realização plena de nossos desejos e anseios.

Com o auxílio de todos nossos heróis prediletos, é claro.

Fábio Cabral

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