domingo, 1 de fevereiro de 2015

Tira Teima 616: Sobre Casamentos, Pactos e Clonagens



Visto como um ponto de amargura pela maioria dos fãs, o ano de 2007 certamente vai ficar marcado pelos leitores do Homem-Aranha por uma das maiores facadas já dadas pelo editorial da Marvel. Esse foi o ano em que ocorreu o "Um dia a Mais", saga em quatro partes extremamente polêmica que praticamente separa em dois momentos a vida do herói amigão da vizinhança. Resolvida como uma solução Deus Ex Machina, a história faz uso até mesmo do diabo para executar algo que há anos parecia determinante na casa das idéias. E o nosso Tira Teima desta vez está aí pra mostrar que Mephisto, o grande arquitetador desta trapaça, já tinha olhos gordos em Peter Parker muito antes do que imaginávamos.

Para quem não lia ainda as histórias ou fugiu dela que nem a Tia May foge da Morte, "One More Day" ou "Um dia a mais" veio com uma premissa pra lá de definitiva pra vida de Peter Parker. O Editor-chefe da Marvel na época, Joe Quesada, se apegava teimosamente a uma ideia já antiga no editorial, de que as historias do Homem-Aranha só sairiam de sua mesmice e atrairiam o novo público se o alterego do herói também fosse rejuvenescido. E para tal, Parker teria que se ver livre do seu casamento. Ou melhor, o casamento teria que ser eliminado da jogada como se nunca tivesse ocorrido.

Pressionando seus funcionários para que isso a todo instante fosse colocado em prática, Quesada conseguiu convencer o escritor do título principal da época, J. Michael Straczynski, a finalizar sua saida da revista com essa idea ousada e assim deixar um terreno livre e fértil para os futuros escritos. Para a proposta que se montava, JMS parecia ser o cara certo para essa jogada. Suas histórias sempre tiveram um clima mais sombrio, sério, por vezes polêmico, com estilão bem Noir nas mãos hábeis de Mike Deodato. Era ele o cara quem poderia dar um clima denso a tão marcante momento em que o próprio Mephisto em pessoa proporia um pacto para um dos herói mais nobre da Casa das Ideias.

Evitando qualquer risco de queimar qualquer artista com uma história que certamente traria o ódio imediato dos fãs, Joe Quesada em pessoa se prontificou em fazer a arte deste arco. Enquanto isso, Straczynski montava o cenário ideal para o tal pacto. Como consequencia direta das revelações de sua identidade secreta na Guerra Civil, Peter Parker viu sua tia May ser vítima de um de seus arquinimigos. Com ela entre a vida e a morte, Parker fez de tudo para salvá-la. Então, no seu maior desespero e após fustiga-lo sutilmente durante todo o arco, Mephisto faz sua aparição. Ele estaria disposto a um acordo - a vida de May pelo amor entre Peter e Mary Jane. A decisão disso sabidamente não recaiu nas mãos de Parker. MJ foi quem decidiu pelos dois e assim sacramentou o fim da união do casal. Como que numa nova realidade, uma singela mudança no passado fez com que Parker voltasse a ser um solteirão enquanto que personagens outrora mortos como Harry Osborn retornasse a vida. E Tia May estaria salva mais uma vez.



Esse final, no entanto, ocorreu de forma truculenta dentro do editorial. Nas duas edições finais do arco, Quesada e Straczynski entraram em desacordo sobre até que ponto seria alterada a mudança e corria-se inclusive o risco de ressuscitar a própria Gwen. A relação ótima que o roteirista e o editor tinham nunca mais foi a mesma e muito tempo depois Joe Quesada escreveu por conta própria o arco "One moment in time", praticamente uma resposta cheia de pesar para amenizar todo o rebuliço que acabou gerando na época. Nesse novo arco, ele tentou minimizar o impacto da inexistência do casamento colocando que apesar de não estarem oficializados, eles viveram como casal juntos até recentemente. Em entrevista, Quesada se mostrou extremamente desconfortavel por tudo ter acontecido do jeito que aconteceu. Mesmo sem usar diretamente as palavras, era praticamente um pedido de desculpas do Editor Chefe.

Mas, como anunciei na chamada deste artigo, antes mesmo de Joe Quesada, o diabo já rondava interessado no casamento de Peter Parker de antes. E isso remete aos anos 90, quando por uma razão bem similar a "One More Day", decidiu-se trazer os clones de volta. Quem viveu essa época, acompanhando a coisa toda através de revistas mensais, deve lembrar bem que este foi um dos periodos que a Marvel mais fustigou seus leitores, deixando-os baratinados e paranoicos. E para quem acompanhar um pouco da história de bastidores sabe que foi ainda pior para quem trabalhava na Marvel na época.

Boa parte da história que estou usando aqui vem dos relatos do site The Ben Reily Tribute, que é baseado nos textos originais do blog The Life of Reilly. É um ótimo relato feito por Andrew Goletz e o editor/escritor Glenn Greenberg (além de alguns outros entrevistados) que contribuem bastante para que nós, leitores, depois de tantos anos entedamos melhor porque as coisas saíram tão enroscadas naquela época. E também, no final, nos aponta como uma teimosia editorial pode levar a um beco sem saida que corre o sério risco de nos levar a soluções Deus Ex Machina e ao desagrado total de fãs. Você pode ler os 35 capítulos dessa história aqui (quando tiver um tempinho).

Pontuando no tempo essa história, vale situar que ela acontece um tempo depois das marcantes "Morte do Superman" e "A Queda do Morcego". Em resposta a isso o setor de vendas da Marvel queria algo a altura e cabia o aracno-editor na época, Mark Bernado, tirar isso das revistas do Aranha. Pensando na chegada da edição 400 e num pensamento meio vingente na época de que eles precisavam colocar mais as historias do Homem-Aranha de volta às suas origens, foi decidido que uma volta a Saga do Clone seria uma boa pedida. Além de revisitar um clássico polêmico do aracnideo, abriria um cliffhanger que poetico que há anos ficou aberto desde a saga do clone original - Seria Peter o original ou o clone?


Com a benção do editor-chefe Tom Defalco, o personagem de Ben Reilly ganhou vida e por um tempo estaria vivendo sob o manto do Aranha Escarlate afim de ganhar o gosto popular. Isso se daria até a edição 400, quando um cliffhanger traria a grande revelação que Reilly era o original e Peter sempre foi o clone. Apesar de tudo, Parker aceitaria passar o manto e se aposentaria, vivendo assim com Mary Jane e sua futura filha May. O novo Homem-Aranha seria solteiro e livre de novo.

As coisas, no entanto, não sairam como se planejava no início. DeFalco acabou saindo do papel de editor-chefe prematuramente e a Marvel entrou numa das piores fases de sua vida, dividindo sua coordenação entre 5 editores. Bob Budiansky assumiu como editor de toda linha aracnidea e sob sua batuta as coisas seguiram uma nova normativa. Com o sucesso da Saga do Clone, o departamento  de vendas exigiu que a trama fosse esticada no melhor estilo "novela das oito" e os roteiristas se perderam com tramas sequer planejadas.

Personagens novos foram introduzidos, de passado desconhecido e poderes exorbitantes - Judas Traveller, Scrier e Kaine. Mortes de personagens ocorreram sem qualquer mensuração - Octopus e Vladimir Kravinoff. A volta do velho vilão Chacal é promovida para deixar tudo mais confuso com o surgimento de muitos mais clones. Por fim, coube a edição 400 a impactante suposta morte da Tia May, algo realmente tocante e que talvez seja o ponto mais forte de toda essa malfada história.


O alvoroço para a grande mudança no status quo do Homem-Aranha foi então sendo levada nas coxas. Dado momento, chegaram realmente a estabelecer que Peter é quem seria o clone, mas eventos mutantes como a Era do Apocalipse motivavam cada vez mais o setor de vendas a esticar a coisa toda pro lado do Homem-Aranha. Assim, o plano para estabelecer o novo homem-aranha foi esticado para além, deixando os ânimos da equipe editorial combalida e os nervos a flor da pele.

Foi coisa para mais de um ano quando finalmente Sensational Spider-man #0 chegou as lojas e o "aloirado" Ben Reilly assumiu o papel de novo Homem-Aranha. Até então, se dizia que os fãs estavam dividos sobre o que tirar dali, mas o editorial finalmente estaria feliz por tudo ter acabado, correto? Não exatamente.


O recém-contratado Dan Jurgens, o mesmo que "matou" o Superman na DC, era agora o escritor do momento em Homem-aranha, mas estava determinado a ter o verdadeiro Peter Parker nas suas histórias. Sendo ele um peso-pesado nas decisões do editorial, não foi difícil convencer Dan Budiansky a reverter tudo o que acabaram de finalizar na saga do Clone. E de alguma maneira teriam que dar um jeito de manter a ideia de deixar o Peter solteiro ainda. Ou ao menos, se livrar daquela criança que sequer nascera.  Ou seja, todos de volta a pauta.

 Houve discussões e desacordos dentro da  própria equipe do editorial. Muitos, como o jovem Tom Brevoort, apenas um editor assistente na época, se recusavam a ser os responsáveis por "matar a filha do Homem-aranha". Ideias para resolver isso sem desdizer o que acabaram de publicar na saga do clone era um desafio e foi sugerido que todos pensasem em planos, ideias, soluções para esse enrosco. E elas vieram de todo lugar. Em seus relatos, o editor-assistente GreenGerg disse que até o zelador deve ter entrado pra dar pitacos e foi nessas que muitas ideias malucas vieram a tona. Todas elas no melhor nível Ex Machina:

- Numa delas, propunha o título "a degenaração do clone" e cabia apenas dizer que Peter foi enganado esse tempo todo e que Ben Reilly seria o clone e se degradaria na sua frente. Mas não para por aí, já que a proposta plantava que logo em seguida, Mary Jane TAMBÉM se revelaria um clone e ela o bebê se degenaria na frente dele. Que dó do Peter!

- Noutra ideia, haveria uma grande explosão e Peter e Ben estariam no centro dela. Um deles morreria e o outro ficaria com amnesia. Mas como não saberia ser era o clone ou o verdadeiro, seguiria a vida assim na dúvida. Já Mary Jane sumiria nesta mesma situação e isso levaria a uma saga grande chamada "Search for MJ". Levaria um longo tempo para encontrá-la e quando acontecesse, ela estaria confusa e a criança perdida. Agora, seria a saga "Baby Quest" e isso geraria outra serie de longos eventos até... Bom, o cara nem foi ouvido mais.


-Teve então outra ideia que propos que durante uma luta, tanto Peter quanto Ben ficariam extremamente feridos e para sobreviver teriam que simplesmente serem fusionados num só! Bem no estilo Dragon Ball mesmo! Já MJ ficou tão nervosa com isso tudo que abortou!

Mas a proposta mais curiosa e que quase foi a frente partiu de Tom Brevoort e ela envolvia um conflito temporal. Na sua ideia, Tanto Peter quanto Ben eram verdadeiros, a unica diferença era que Ben veio do futuro imediato de Parker e voltou no tempo cinco anos no passado e de algum modo confuso quanto sua origem. Isso pareceu uma excelente ideia para Budiansky, mas era preciso encontrar os motivos para essa volta no tempo. Daí, veio a ideia do próprio GreenGerg que sugeriu que tudo era uma aposta de um jogo maior entre os personagens de Judas Traveller e Scrier. O que ambos apostaram ali é se o Homem-Aranha, como representante do bem altruista toda humanidade, aceitaria sacrificar sua vida em prol do bem de outros. Algo bem comum ao aranha, não?

Mas Scrier jogou sujo. Lançou um raio que supostamente desintegrou Parker e questionou o novo Homem-Aranha se ele daria a própria alma em troca de salvar a de Peter. Ben aceita e - então - é revelado que Scrier era Mephisto disfarçado armando das suas. "Ok, Peter está vivo! Porque Peter é você! Ele nunca morreu". E então, ele revela que aquele raio levou Peter ao passado (o passado de Ben, sem lembranças) e que manipulou o Chacal pra inventar toda aquela história de clones.



Assim, nessa reviravolta, Mephisto ganharia a aposta de Traveler já que em seu jogo Peter não se sacrificou pelos outros, mas sim por si mesmo (mesmo sem saber). E de quebra estaria levando 2 almas ali pra sua coleção (a de Peter e de Traveller). Nessas, MJ teria um aborto, mas o Ben se provaria sendo o Peter de sempre e isso era o que todos queriam, não? Acreditem quando digo que essa história toda foi considerada em alta conta por Budiansky. E só não foi a frente porque Dan Jurgens bateu o pé em toda essa maluquice.  Outro escritor da epoca, Todd Dezago, ainda tentando manter a ideia de viagem do tempo na pauta, propos uma versão similar com a maquina do tempo do Doutor Destino, mas também não foi aceito. Jurgens não queria nada dessas viagens temporais.


Algumas dessas e outras histórias malucas que vieram para tentar soluciona toda confusão envolvendo clones chegou até mesmo a ser publicada em uma edição especial chamada 101 Ways to End the Clone Saga. É uma ótima e descontraida leitura pra se imaginar como funcionava o editorial da época. É claro que bem romantizada para ficar engraçada. Na época, deveria ser um terror.

Mas, como bem sabemos, a história do clone acabou tendo outro fim. A nova proposta era que alguém, um grande inimigo do Homem-Aranha, estaria armando todo um jogo para enganar e enlouquecer a vida do verdadeiro Peter Parker desde o começo. Dan Jurgens e Kurt Busiek votavam em Otto Octavius, mas já estava morto pelas mãos de Kaine ano passado. Restou a ideia de que Harry Osborn, ainda vivo e sob o disfarce novo do Ogro, seria o grande manipulador. E esse seria de fato o final de tudo em 1996, assim como foi mostrado na minissérie Spider-man: The Clone Saga, publicada aqui em A Teia do Homem-Aranha.



Mas ainda não. Bob Harras, editor da linha mutante assumiu como editor-chefe (o cargo único voltou mais uma vez) e exigiu que o final da saga do clone não atrapalhasse a minissérie Massacre. Com isso, mais um atraso que ocasionou a saida de um irritado Dan Jurgens da Marvel. O próprio Harras meteria diretamente o bedelho na história depois, exigindo assim a ressurreição de Norman Osborn dos mortos e o final que todos nós presenciamos no final daquele ano. Por sorte, o aborto de MJ foi trocado pelo rapto de sua criança, mas seu casamento fora preservado. Mais tarde até cogitaram sumir com ela num acidente de avião, mas isso é pano pra outra história. A verdade é que aquele era o fim de uma novela de dois anos, o fim do pesadelo no editorial do Homem-Aranha.



E toda essa longa história aqui de 1994 a 1996 se mistura bem com a que vimos em 2007. Temos em ambas mandatos editoriais para impor certas crenças em contrastes com tudo e todos a frente - roteiristas e leitores - na esperança de que com o tempo, a história seja vista com bons olhos. E curiosamente, apesar de todo sofrimento da época, vejo hoje uma parcial verdade nesta máxima quando conhecidos já olham com carinho e nostalgia para esses eventos dos anos 90 e até leitores que vieram depois desejarem a volta do falecido Ben Reilly. Mediante isso, eu acabo me perguntando se daqui a alguns anos estaria também vendo por aí outros novos olhares sobre o pacto de Quesada como algo justificável. Talvez seja aquele velho efeito em que o papel de Editor-Chefe e Mephisto se misturem, e mal sabemos de imediato a verdadeira natureza de seus planos.



BONUS
Mas se vocês acham que a ligação de Parker com Mephisto para por aí, estão redondamente enganados. Durante a edição 247 do Homem-Aranha, em plena Guerras Secretas, Beyonder e Mephisto fazem uma espécie de aposta (olha aí as idéias!) em que os "campeões" de cada seriam respectivamente, Zarathos e Homem-Aranha. O desafio seria este: o Homem-Aranha é um indivíduo motivado por um profundo sentido de responsabilidade, tudo que Zarathos teria a fazer é levá-lo renunciar essa sua responsabilidade, de alguma forma concreta. Se o Homem-Aranha persistir, a destruição do multiverso pelas mãos de Beyonder seria adiada em 24 horas. Se não, o Beyonder continuaria com seus planos.



Não é preciso ser expert no assunto para saber que Zarathos por mais que atormentasse Peter com visões de seus piores medos, não levou a melhor e assim Mephisto com uma ajudinha do Homem-Aranha ganhou o tempo necessário para salvar seu reino da inexistência. Pena que o diabão não é nem um pouco grato pra pegar leve mais tarde com o pobre Parker, não?

Coveiro

PS: Agradecimentos especiais ao Erick Vinicius por chutar a bola com o tema pra eu fazer esse gol. Você pode ver mais coisas sobre os bastidores da saga do clone em forma de dossies e twipviews clicando aqui!

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