sábado, 10 de janeiro de 2009

Surfista Prateado: De Volta às Estrelas


Surfista Prateado: Requiem

Ao contemplar a dinâmica de destruição e criação de estrelas em um cantão longínquo do cosmo, o Norrin Radd, o Surfista Prateado, pensa em como a luz e as trevas, a vida e a morte, são contíguas, interligadas, circulares. E com esses pensamentos solitários, como boa parte de sua vida como um ser de poderes cósmicos, ele parte em direção da Terra, buscando uma solução para o que lhe aflige na imensidão do espaço. É assim que começo a falar do que, particularmente, considero já uma obra prima da dupla J. M. Straczynski e Esad Ribic, Surfista Prateado: Réquiem. Um belíssimo conto fora da continuidade normal da Marvel

Na primeira edição, vemos o Quarteto Fantástico em um dia comum. Não enfrentando alguma ameaça galáctica, mas interagindo, cada membro, como uma família. Até que recebem uma não tão inusitada visita do Surfista Prateado, que flutua em frente ao edifício Baxter. Ele pede que fique a sós com Reed e Susan, e lhes dá a notícia. A gravidade fica clara na reação do casal. Norrin Radd está morrendo.


Surfista Prateado: Requiem
Dias se passam, com Reed e Norrin confinados no laboratório, enquanto Johnny e Ben continuam imaginando o que pode estar acontecendo. O único sinal de que é algo grave é o choro compulsivo e quase ininterrupto de Susan. Uma série de testes e experiências é realizada, perde-se a noção de dia e noite, e nada disso adianta. Um dos seres humanos mais inteligentes do mundo se rende a algo que ele simplesmente não pode compreender. A fisiologia do Surfista é algo muito além do que o intelecto do Sr. Fantástico possa começar a compreender. A frustração toma conta dele e de Sue.

Surfista Prateado: Requiem
Tendo noção de que seus amigos não podem lhe ajudar, o Surfista mais uma vez se emerge em pensamentos, lembrando-se de como se tornou arauto de Galactus, em uma atitude altruísta que salvou a vida de milhões de pessoas em seu planeta – Zenn-La – e a mulher que amava. Como sua consciência se perdeu em meio aos poderes cósmicos, e como foi preciso o esforço heróico e inacreditável do Quarteto Fantástico para que uma fração do que foi Norrin Radd emergisse da reluzente cobertura de seu corpo. Como, graças a eles, pode viver coisas inimagináveis a praticamente todos os seres conscientes de todo o cosmos. E, agora, com uma iminente e inevitável morte, o Surfista Prateado, o maior arauto que a entidade Galactus já teve, com a dignidade que lhe é peculiar, afirma para si mesmo, e para seus amigos, que não se arrepende de nada que viveu.

Surfista Prateado: Requiem
Norrin os consola, dizendo que fizeram tudo que puderam. Agora, com cerca de um mês de vida restando, diz que acha correto vislumbrar um pouco do mundo que adotou como segunda casa, e depois volta a Zenn-La. Ele se despede, novamente atribuindo aos esforços dos amigos o fato de poder ter vivido como alguém com consciência nos últimos anos, por ter sido feliz. Ele os agradece e parte, aceitando o fato de que está morrendo.

Surfista Prateado: Requiem
Antes de passarmos à segunda parte, acredito que haja algo de que vale à pena falar. O principal personagem com quem o Surfista interage é o Homem-Aranha. Foi exatamente Straczynski que teve de escrever a polêmica (e de péssimo desfecho, na minha opinião) saga Um Dia a Mais, da cronologia oficial do cabeça-de-teia. Pois além da belíssima história dos últimos dias do Surfista Prateado, o roteirista demonstrou que, com liberdade, sabe escrever uma história do Aranha muito bem, com todo humor necessário, e, mais importante nessa observação, casado e interagindo muito bem com sua esposa Mary Jane. E o roteirista de nome difícil faz questão de alfinetar o “pacto”, idéia do “genial” (sentiu a ironia?) Joe Quesada.

Voltando à história, o Aranha está em dificuldades. Enfrenta o que parece ser uma versão poderosíssima do Esmaga-Aranha, sem nenhuma perspectiva de vitória (o que não faz com que ao menos pense em desistir). De repente, ele tem uma senhora ajuda de um certo ex-arauto de Galactus. O Surfista rapidamente destrói a máquina, salvando o dia tanto da população civil quanto do amigão da vizinhança.

Surfista Prateado: Requiem
Peter se mostra muito grato, e lança uma piada atrás da outra, enquanto tenta manter uma conversa com o, para ele, misterioso ser. Norrin só o observa e começa a partir. O Aranha não desiste, pois percebe que há algo de errado. Ele vai atrás do Surfista até onde consegue, mas, finalmente, fala que percebeu que o ser cósmico guarda algum problema dentro de si.

Isso atraí a atenção do Surfista, que voltando, ainda demora a verbalizar o que está sentindo. A primeira coisa de que fala é que nunca mais voltaria à Terra depois daquele dia. Peter continua tentando amenizar o papo com piadas (é quase incontrolável para ele), até que percebe que é sério mesmo. Que é algo que boas risadas não resolverão.

Surfista Prateado: Requiem
Norrin então comenta da mistura de estranhamento e fascínio que tem pelos habitantes da Terra, pois, ao mesmo tempo em que são capazes de coisas maravilhosas, parecem preferir se odiar, destruírem-se, buscar apenas o poder uns sobre os outros. Ele queria fazer alguma coisa aos terráqueos antes de partir.

As sugestões de Peter sempre esbarram no fato de que, por mais que tenha poderes inimagináveis, o Surfista não poderia fazer com que toda uma raça, todo um planeta, agisse de acordo com o que ele acha que é certo. Não lhes dar autonomia para, em conjunto, melhorar a forma como vivem e convivem seria um erro tão grave quanto aqueles que ele apontou no início da conversa. Os dois logo percebem que ele não poderia, de forma direta, fazer da Terra um lugar melhor.

Surfista Prateado: Requiem
A conversa no entardecer evolui para uma dúvida que o Aranha sempre teve, mas nunca havia se aproximado do Surfista o suficiente para perguntar. Por que ele, com todo poder que encerra em seu, usa apenas uma prancha para se locomover no espaço. Norrin tenta explicar o que é entrar em contato com a imensidão do cosmos, e como se encerrar em uma cápsula ou nave o privaria de tamanho privilégio.

Mas, claro, Peter não tem a mínima idéia da sensação. O Surfista, então diz que isso pode ser solucionado, cedendo-lhe parte de seu poder por alguns momentos. O Aranha, porém, não aceita. Sua relação entre poderes e responsabilidades já é muito complexa para que carregue mais esse fardo, pedindo para que façam isso em uma próxima vez. Norrin novamente enfatiza que não haverá outra vez. É então que o aracnídeo tem uma idéia.

Ele volta já de noite. Em seus braços, uma hesitante MJ chega e se aproxima do Surfista, perguntando enrolada como ele se chama. Quando lhe diz seu verdadeiro nome, o Aranha se sente um idiota por nunca ter perguntado isso a ele. Confirmando que MJ sabe o que farão, o Surfista lhe concede uma fração de seu poder cósmico, e ela parte em direção ao cosmos, para ter a mais impressionante experiência de sua vida. Vivendo maravilhas cotidianamente, Peter achou justo dar a ela esse privilégio no dia do seu aniversário.

Em menos de uma hora Mary Jane volta, sem poder se expressar direito sobre o que sentiu. O amor que o casal demonstra compartilhar, faz Norrin se lembrar da amada que deixou em Zenn-La.

Surfista Prateado: Requiem
De repente, Peter tem uma resposta à pergunta de Norrin. O que ele poderia fazer pelo planeta Terra no eclipsar de sua vida? Os problemas dos terráqueos devem ser resolvidos por eles mesmos, mas ceder por alguns minutos o privilégio que MJ teve por quase uma hora talvez ajude-os a começar a ver as coisas de outra maneira. E é isso que o Surfista faz. Quase se esgotando, em uma explosão de energia, todos os seres humanos se sentem, de forma simultânea, mais livres do que nunca mais serão.

Ainda se recuperando, Norrin agradece a Peter, que faz o mesmo. Ele parte, tendo a felicidade dupla de ter feito algo a mais pela humanidade de que tanto gosta, e por ter, no apagar de sua vida, feito amizade com o mais humano dos heróis. O Homem-Aranha vê o Surfista Prateado se afastar e desaparecer, para nunca mais vê-lo ou ouvir falar dele, desejando que ele tenha o descanso que tanto fez por merecer.

Surfista Prateado: Requiem
A edição número 2 traz as duas últimas partes dessa bela história, e começa com o Surfista pensando se o povo terráqueo sabe o quanto foi abençoado com seu lar, na medida em que sobrevoa o planeta, despedindo-se de suas belezas. Antes de ir, uma última passada onde tudo começou para ele na Terra, Nova York. E isso acaba proporcionando um encontro inesperado.

O Dr. Estranho, seu companheiro nos Defensores, surge à sua frente, explicando-lhe que Reed o procurara com o problema do Surfista, mas que também não encontrou respostas. Inclusive, diz que seu valor é tanto que amigos e inimigos uniram esforços para descobrir uma cura, novamente em vão. Strange, então, entrega uma dádiva a Norrin. Ele reúne o que crê ser todo o conhecimento de antes e depois da chegada do Surfista, dizendo que a forma de agradecer pelo confronto com Galactus, que preservou a humanidade, é fazendo com que ele saiba tudo que salvou.

Sem palavras, o mago supremo não consegue se despedir, e Norrin parte em direção à imensidão.

Surfista Prateado: Requiem
O Surfista viaja por dias em disparada, sabendo da escassez de tempo, vislumbrando diversas maravilhas no caminho até Zenn-La. Contudo, ele logo se defronta com mais uma manifestação de violência, de guerra. E acaba atraído por uma convocação que ecoa em sua mente.

Ele encontra dois seres, que se apresentam como Pyll do povo linneas, e T’kall dos Rumatis, certificando-se de que aquele é um ex-arauto de Galactus. Explicam que aquelas naves que ele viu são de seus povos, e que as batalhas duram gerações. E parecem se orgulhar disso, deixando claro que a raiz de sua luta centenária era, principalmente, a discordância, mas, de uma forma geral, as diferenças entre si. Suas próprias razoes de existência passaram a ser os preparativos para a guerra.

Surfista Prateado: Requiem
A disputa entre fiéis e blasfemadores, acusações mútuas, causou cada vez mais destruição, enquanto ambos os lados desejavam provar ser superiores. Tal situação deixa o Surfista Prateado quase sem palavras, e questiona porque seus líderes assistem tudo juntos, sem tomar parte naquilo. A explicação beira o surreal, quando eles dizem que a guerra já está tão entranhada em suas mentes, que a busca por santidade quase perdeu o sentido, a ponto de verem apenas beleza na destruição.

Explicam, então, a presença do ex-arauto ali. Eles querem que, em sua sabedoria, o Surfista escolha o lado vencedor, já que se equiparam a gerações. Mas Norrin não vê diferença entre os dois povos. Os dois líderes imaginavam que isso acontecesse, e com a paciência de quem sempre viveu em guerra, dizem que ele pode decidir quando quiser.

Surfista Prateado: Requiem
Norrin parte visivelmente perturbado, e decide... que ambos devem perecer. Ataca as duas frotas espaciais, mesmo se ferindo no combate em razão de sua deterioração, destruindo todas as suas armas. Em seguida, ruma a cada um dos planetas e tomba com os templos e ídolos que cada um de seus adoradores criam serem inatingíveis pois sagrados. Demonstrou que aquela guerra não era divina, mas de dois povos presunçosos demais para se darem conta da imbecilidade de seus motivos. E era o fim da guerra.

Surfista Prateado: Requiem
E em sua paz, os dois povos erigiram templos e ídolos em homenagem aquele que acabou com a guerra, e disse que se apenas o sagrado e santo não era atingido por ela, que tudo fosse sagrado e santo, nunca mais voltou.

Na última parte de Surfista Prateado: Réquiem, e tudo aquilo que Norrin pensava no início da história reforça o seu sentido. A continuidade entre vida e morte se materializa em sua necessidade de escolher morrer onde nasceu. Em sua casa. Em Zenn-La.

Já muito debilitado, sem parte de sua carapaça prateada, ele chega ao planeta, mas logo perde a consciência. Quando volta a si, sua amada, aquela que quis preservar junto com seu planeta na vinda de Galactus, Zalla-Bal o segura em seus braços. E quase sem palavras, tenta confortá-lo, percebendo o inevitável destino que o espera.

Surfista Prateado: Requiem
Imperatriz de Zenn-La, e investida de parte de seu poder cósmico de forma permanente em um grave confronto contra Mephisto, ela ouve de um de seus oficiais que sua ciência não pode ajudar seu amado. Ela se convence de que deve retornar o poder que lhe foi concedido, a fim de ajudar Norrin a sobreviver, sem saber se daria certo, ou mesmo se sobreviveria.

O Surfista rejeita e explica que não foi para lá só para morrer. Mas para ter certeza de que ela está bem. Viva. E que esse pensamento seja o último que tenha quando finalmente perecer, confortando sua iminente partida. Sua última alegria é que ela viva por ele, sem se arrepender de nada, assim como ele não se arrepende.

Surfista Prateado: Requiem
Em seu leito de morte, preparado com todas as honras, Norrin recebe por dias todos aqueles que queriam agradecer por seu sacrifício permitir que eles, e tudo que os rodeia e rodeará, possam existir. Assim como na Terra. E todos que tiveram o privilégio de tocá-lo levavam um pouco dele em si. Um sinal em sua pele que os lembrava de seu sacrifício a cada desequilíbrio e desentendimento, apaziguando-os.

Então, o inesperado ocorre. Faltando muito pouco para o Surfista Prateado finalmente encerrar sua existência, a sombra mais temida do universo ressurge nos céus de Zeen-La depois de anos. O Devorador de Mundos se aproxima.

Surfista Prateado: Requiem
Em desespero, Norrin tenta se levantar e ir até seu antigo mestre. Crendo que Galactus esperava sua morte para cumprir o que iniciara anos atrás, ele está disposto a atrair a ira da entidade cósmica para si. E a presença de Norrin é exatamente o que quer o Devorador.

Aparado, sem poder andar, Norrin é levado à presença de seu ex-mestre, que o ergue com seu poder até a altura de seu rosto. E vê-se pesar em sua expressão. Sem ter certeza se é possível, o Devorador diz que pode tentar salvá-lo. Norrin recusa, aceitando a própria mortalidade. Mas pede um favor a Galacuts.

Surfista Prateado: Requiem
Mas ele não precisa nem ouvir, pois nunca se atreveria a fazer qualquer mal a Zenn-La, ou permitiria que outro o fizesse. Galactus respeita imensamente o que seu ex-arauto foi e é, o ser mais honrado que conheceu, segundo suas próprias palavras.

Planando à frente do Devorador, em um último vôo, o Surfista Prateado abandona a existência física para sempre.

Surfista Prateado: Requiem
E por três dias Galactus remoeu o luto junto dos habitantes de Zenn-La. Imóvel, gigante, severo e entristecido, ele não causou terror, pela primeira vez, mas compartilhou a perda de Norrin Radd.

Uma última honra foi fruto direto de um pedido de Shalla-Bal ao Devorador. Partindo em sua nave, ele levou o corpo de Norrin consigo, transformando-o em uma estrela, que seria vista sempre como símbolo de esperança por seu povo. O povo que ele salvou.

Surfista Prateado: Requiem
E como se iniciou a história, na morte e nascimento de estrelas, Norrin foi eternizado. E de repente percebemos que parte da história foi narrada pelo onipresente Vigia, que também viu em Norrin Radd, no Surfista Prateado, um ser capaz dos maiores sacrifícios em nome da felicidade de muitos. Conhecidos ou não. Que viu nele um amigo, afirmando que sua ausência nunca seria suprida.

É difícil falar alguma coisa depois de um artigo tão longo e uma história tão bela. Tanto os que conhecem quanto os que nunca leram nada do Surfista Prateado, e leram essa mini, tiveram, em minha opinião, uma experiência rara entre os leitores de quadrinhos. Encontraram trama, arte, narrativa, perfeitamente casados com cada um dos personagens apresentados. Ainda que um fim alternativo, uma ode às belas histórias que as HQs nos permitem conhecer, um respeito imenso com leitores apreciadores dessa forma de arte. Uma das maiores histórias escritas no século XXI, se não de todos os tempos.


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