segunda-feira, 28 de agosto de 2017

KIRBY: 100 Anos

Se você acompanha bastante algumas páginas sobre quadrinhos, deve ter percebido que hoje foi um dia atípico nas redes sociais. Neste dia 28 de Agosto, estamos comemorando o centenário do grande e lendário Jack Kirby, aquele que sem exagero algum formou a cara da Marvel Comics em seus primórdios e influenciou nos anos seguintes gerações e gerações de artistas que passaram pela Casa das Ideias.


Contudo, sua história como artista antecede em muito a criação da própria Marvel. Nascido em Lower East Side na ilha de Manhattan, o garoto Jacob Kurtzberg era praticamente um autodidata no assunto e desde seus 19 anos despontava fazendo tirinhas do jornal interno do sindicato de onde trabalhava. Começou cedo no serviço, tendo que ajudar em casa devido a Grande Depressão que os EUA vivia. Mas não demorou muito pra cair nas graças do estúdio de animação Fleisher (que criou Popeye e Betty Boop), que o levou a aprimorar seu trabalho como artista.

Mas foi em 1940 que conheceu o cara cuja parceria mudaria sua vida. Foi no Sindicato da Fox Feature que se associou a Joe Simon e juntos começaram a elaborar ideias fantásticas que logo cairam no radar a Timely Comics de Martin Goodman, que inclusive na época já investia em super-heróis como Namor e Tocha Humana. Um ano depois nasceria o Capitão América, um fenômeno de vendas pra época, atingindo a marca de 1 milhão de cópias vendias só nos EUA. Isso aconteceu apenas alguns meses antes do ataque de Pearl Harbour e dos EUA entrar de vez na Guerra, o que fez com que a revista acabasse sendo uma das mais requisitadas, apesar de algumas ameaças de partidários do Nazismo nos EUA.


Um desentendimento com a editora e o chamado da Guerra fez com que Kirby se afastasse da precursora da Marvel por uns tempos. Sua maior criação por lá, Capitão América ainda persistiria por mais uns anos até miar de vez no meio da década de 50. Boa parte das histórias acabaram tendo autoria do jovem sobrinho da esposa de Goodman que começou como estagiário na mesma época que Kirby e Simon estavam por lá. Seu nome era Stanley Martin Lieber, mas você provavelmente o conhece por Stan Lee.

Nesse tempo fora da Casa das Ideias, Kirby esteve na National Comics Publications (Futura DC Comics), trabalhou em revistinhas promocionais da guerra exclusiva para ser levadas ao pessoal na batalha e chegou a ajudar na Divisão de Treinamento de Filmes do exército. Isso, no entanto, não o livrou de ir a frente de batalha mais tarde, vivendo na pele o que a sua maior criação se aventurava a fazer praticamente dois meses depois do Dia-D na Europa. Seu serviço militar chegou ao fim em Julho de 1945, com algumas condecorações devidas, mas pronto para voltar a fazer aquilo que mais adorava - os quadrinhos.



Daí, seguiu um caminho por pequenas editoras como a Harvey, Hillman e a Crestwood. Na época, o universo de super-heróis estava em baixa e ele e Simon foram requisitados a trabalhar em outros gêneros. A parceria dos dois, no entanto, só foi até o meio dos anos 50 quando arriscaram a ter sua própria pequena editora, Mainline Comics, e criaram o Fighting American, inspirado em vocês sabem quem. Sem muito sucesso no próprio negócio, Kirby se afastou do companheiro e seguiu a vida como freelancer para a National e para a Atlas Comics (nome intermediário da editora do Goodman entre a fase da Timely e Marvel). Nessa época, o hype dos quadrinhos eram as histórias de monstros e vale ressaltar aqui que o hoje tão querido Groot, concebido de um jeito mais monstruoso, nasceu das mãos dele mais ou menos naquele tempo.

Com uma carga de produção pesada na época (e impensável pra muitos artistas hoje), Kirby produzia 109 páginas por mês para conseguir se manter num momento em que o mercado era um tanto ingrato. Mas sendo o artista preferido da Casa, foi aquele que o jovem - agora editor na época - Stan Lee convidou de cara para ambos apostarem de novo na narrativa de super-heróis, desta vez com uma pegada mais puxada pra científica e humanizando mais os protagonistas. Assim, nasceu o Quarteto Fantástico e - meses depois - a Atlas seria rebatizada como Marvel Comics.




Provavelmente, você vai encontrar inúmeros textos por aí sempre reacendendo a fogueira sobre a discussão do mérito de a quem se deve o sucesso do Quarteto Fantástico e dos inúmeros heróis que vieram depois na Casa das Ideias. E provavelmente a resposta mais sincera é que são os dois. Bem diferente da situação amarga que acabou a parceria anos depois, o começo da Marvel Comics se deveu justamente a um bom entrosamento cheio de combustão criativa quando um hiperativo Stan Lee se juntou a máquina de produção que era Jack Kirby.

Stan  sempre se mostrou um cara a frente do seu tempo, antenado nos assuntos do momento, e assim deu alma a narrativa daquelas histórias e soube vendê-las muito bem ao público (ainda faz bem esse trabalho até hoje, vale ressaltar). Já Kirby estava a cada dia se superando, reinventando as técnicas que seriam definidoras por anos a frente para gerações de artistas, como os seus arrojados movimentos de lutas em perspectiva, cenários com detalhamentos decorativos e os famosos "Kirby doots" tão explosivos. Uma das frases mais marcantes de estudiosos do assunto atribuem o sucesso na criação dos heróis da era de Prata ao fato de que "Kirby deu a eles a sua divindade, Lee deu a eles sua humanidade". E essa é uma citação extremamente forte e verdadeira para quem se aprofunda na história dos bastidores.



Aqui seria o ponto de certamente detalhar pela ordem as inúmeras criações da Marvel que ele deu vida e que se tornaram um sucesso imediato entre os leitores,  que - anos depois - turbinaram ainda mais a fama com os cinemas. Mas citar esses personagens seria algo na escala das centenas, praticamente impraticável para um só texto de internet, sendo mais próprio buscar um livro. E tem alguns muito legais sobre o tema que saíram este ano. É bom dar uma procurada.

Essa sua passagem pela Marvel durou até o final dos anos 60, quando novos desentendimentos salariais e uma briga mais séria com Stan Lee fez com que Kirby pulasse de cabeça na DC a convite do editor Carmine Infantino. Foi quando nasceu a maioria dos seus personagens marcantes por lá - Novos Deuses, Etrigan, Senhor Milagre, O.M.A.C e Darkseid. Na época, não foram considerados os melhores produtos da editora, e no final dos anos 70, após desinteresse da DC Comics, Kirby aceitou voltar para a Marvel sob a condição de ter controle criativo total de suas revistas e de não ter um dedo de Stan Lee em seu material. Foi uma fase questionável do trabalho do desenhista, com um Capitão América e Pantera Negra que pareciam completamente dissociados do restante do universo Marvel e com histórias  um tanto datadas. Nesse tempo, também veio os Eternos, 2001: Uma odisseia no espaço e o Homem-Máquina.



O fato é que essa volta para a Marvel acabou sendo que um pouco indigesta. Quando distante, Kirby era adorado pela geração de desenhista da época, mas uma vez que se mantinha perto, tendo seu trabalho inclusive com pouco retorno do público, passou a ser desdenhado pelos novos talentos. Muitos questionavam os motivos por ele ser intocável no editorial, mas Stan Lee foi firme em deixá-lo até o fim nos seus projetos mesmo que ambos não mais se falassem. Há quem diga que Jack foi perdendo o gosto pelos quadrinhos depois de tantas decepções, freando sua capacidade de ousar e se reinventar como aconteceu por anos.

Sua nova direção foi para o lado da animação, servindo inicialmente como consultor do desenho do Quarteto Fantástico de 1978 da Hannah-Barbera. Lá, também voltou a criar personagens pro estúdio, como Thundarr, o Bárbaro, Turbo Teen e alguns outros. Muito tempo depois, foi abordado pela Pacific Comics para criar um "Kirbyverso" cujos os direitos permaneceriam com o autor (algo bem próximo do que acabou se tornando a Image nos dias de hoje). Surgiram aí o Capitão Vitória e os Rangers Galácticos e Silver Star (depois adquiridos pela Topps Comics), e não faz muito tempo que a Dynamite juntou-os com outros heróis criados por Jack e criou o seu "Kirby Genesis". Em meio a isso, com a criação da 'Sala da Fama das Histórias em quadrinhos', Jack Kirby também foi indicado a fazer parte da galeria junto com Will Eisner e Carl Banks.



Em todo esse tempo, o desentendimento de Kirby com a Marvel, direcionando quase que exclusivamente a culpa para seu ex-parceiro Stan Lee, prevaleceu. Há um relato de Jim Shooter, editor-chefe da Marvel na época, em que numa situação que começou meio embaraçosa, Stan e Kirby tiveram um momento de calmaria para dar trégua um ao outro, mas que foi interrompido bruscamente pela Roz, esposa de Kirby, que parecia muito mais sentida que o desenhista e puxou o marido da festa de aniversário de 25 anos da Marvel em 1986. Kirby faleceu em 1994, sem os dois voltarem de novo a conversar, mas com Stan Lee discretamente observando de longe seu funeral. Até hoje, esse é um assunto que Lee considera amargo de voltar a se falar.

Mas os tempos passaram e coisas mudaram de lá pra cá. Nos últimos anos, podemos dizer que se fez justiça a história do quadrinista. O impasse judicial entre a Marvel e a família Kirby se resolveu no ano de 2014 e tempos depois era possível ver nas páginas de créditos da revista o nome de Kirby como criador dos personagens. E meses atrás mostramos aqui a justa homenagem que a Disney fez a Kirby entregando-o o título de "Lendas da Disney" (recebido por seu filho, Neal Kirby). E quem não percebeu quão visualmente influenciado é o filme Thor: Ragnarok que sai nos cinemas no final de Outubro?

Coveiro

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