quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Resenha 616: Pantera Negra



Para muitos, o nome do Pantera Negra só veio a tona em 2016 com Vingadores: Guerra Civil. Mas o personagem tem uma importância significativa no meio dos super-heróis a décadas. É considerado o primeiro super-herói negro (com poderes) dos quadrinhos e desde sempre suas histórias estavam envoltas em discussões maduras além de seu tempo. Com isso, eu não esperaria algo diferente pra ver nos cinemas. Pantera Negra é o filme de super-heróis mais político já feito até hoje, sendo mais um marco significativo da Marvel Studios ao levar um vibrante mundo afrofuturista ao seu universo cinematográfico.

A história se passa apenas a alguns dias após a morte de seu pai, T'Chaka,  no terceiro filme do Capitão América. Alguns personagens sequer estavam cientes da morte do rei e são convocados para a coroação de T'Challa (mais uma vez interpretado por Chadwick Boseman). T'Challa acredita que não está preparado para assumir a posição e as obrigações de um rei. Com isso, como acontece no transito de qualquer substituição de pessoa no poder, suas capacidades são questionadas. E essa prerrogativa é o mote principal do filme, algo que foi mais de uma vez trabalhada em diferentes fases dos quadrinhos do personagem.

Para o leitor curioso, há três passagens do herói dos quadrinhos que se deve ir atrás se quiser se deliciar mais ao assistir o filme. A primeira delas é a de Don McGregor, que foi publicada em Jungle Action nos anos 70, e é o esqueleto primário que compõe esse filme. Ela define a estrutura base do Reino de Wakanda, estabelece toda a mitologia mística por trás do rito do Pantera Negra e ainda apresenta o grande vilão do herói, que não é segredo pra ninguém que é Erik Killmonger (vivido nos cinemas por Michael B. Jordan). Temos alguns coadjuvantes como W'Kabi (Daniel Kaluuya) dessa época que são levados a tela juntamente com cenários que já eram fantásticos antes e não podiam faltar como as Cachoeiras do Guerreiro.


A outra fase que deve estar na sua lista de leitura do personagem é considerada a principal e mais importante até hoje. Inédita no Brasil, com mais de 60 edições e outras mais que continuaram com o título chamado The Crew, a passagem de Christopher Priest em Pantera Negra foi a que levou Wakanda pela primeira vez ao status de cidade futurista além de seu tempo. Como muito bem indica o filme, o Vibranium não só deu ao povo daquele lugar o metal mais resistente do planeta, mas um meio de desenvolver novas tecnologias antes impensadas para o mundo externo. Os conceito das Dora Milaje e Cães de Guerra foram incorporados nessa fase, assim como uma série de coadjuvantes importantes que acompanharam o herói nessa jornada como Zuri (Forrester Whitaker), Nakya (Lupita Nyong'o) , Okoye (Danai Gurira) e o agente Everett Ross (Martin Freeman). Mas o principal dessa fase foi o tom criado pra história, elevando o Pantera Negra ao status de que ser Rei e Herói requisitavam dele acima de tudo preparação e determinação. Desde então, T'Challa se tornou o personagem inabalável e imbatível, de um jeito que muitos o comparariam com o Capitão América.

Por fim, quem está de olho nos quadrinhos atuais sabe que  visualmente o filme se inspirou e muito nas histórias escritas por Ta-Nehisi Coates e desenhadas por Brian Stelfreeze e Chris Sprouse. Temos as elaboradas naves, as majestosas edificações, os conceitos mais modernos das representações das tribos e como elas são hoje denominadas e até mesmo um pouco da tecnologia fantástica exemplificada no uniforme mais moderno capaz de reter e liberar energia assim como nas contas kymoios (uma evolução dos kymoio cards da fase Priest) de multi-utilidade. Coates também trouxe ao personagem um pouco mais de humanidade de novo ao personagem, deixando um vislumbre de dúvida e vulnerabilidade ao Rei, que pode também ter inspirado algumas cenas do filme. Uma das Dora Milaje chamada Ayo citada uma vez no filme é criação sua.


Em todas essas fases, tão mais importante do que o Rei, o Reino sempre aparece como um personagem da trama. E no filme, como em nenhuma outra vez, Wakanda é levada com o máximo de detalhes possíveis que poderia se ter na película. Uma introdução de sua história é narrada logo no começo por T'Chaka (mais uma vez com John Kani no papel), falando da organização das tribos, do advento da queda do meteorito de vibranium eras atrás e a necessidade de se proteger do mundo escondendo seus segredos. Depois, no decorrer do filme, você é levado ao país de canto a canto. Uma viagem numa nave wakadana faz você passar da área mais rural, com pastores e agricultores, até ao mais moderno do país protegido por uma redoma invisível. Conhecemos desde o dia a dia simples nas ruas com feiras e restaurantes locais até as estonteantes minas de vibranium e laboratórios super-tecnológicos enterrados nelas. O filme não economiza cenas impactantes e bem elaboradas como é a coroação do rei ou o ritual da erva em forma de coração.

A beleza não fica só no cenário, já que o figurino é um deslumbre só. Para cada uma da cinco tribos, houve um cuidado de levar particularidades inspiradas de diferentes culturas do continente, sempre tentando modernizá-las para a realidade de um país futurista como Wakanda deve ser. Outro ponto que devo comentar é a trilha sonora e músicas escolhidas para o filme. Algumas pessoas questionaram o uso do rap de Kendrik Lamar no filme, mas asseguro que foi colocado a todo momento de uma maneira inteligente, em cenas de ação que cabiam perfeitamente e até tinham perfeita lógica de uso por conta da origem do vilão. E no momento certo, entra uma trilha sonora mais clássica com evidente inspiração em ritmos tribais.


E já que voltamos a falar do vilão, vale um destaque em particular para o papel de Michael B. Jordan no filme, que anteriormente já disse que buscava uma redenção no mundo dos super-heróis pelo que aconteceu no malfadado Quarteto Fantástico e entregou um dos mais bem elaborados vilões do UCM. Seu Erik Killmonger tem toda a estrutura do personagem dos quadrinhos, com uma história já bem ligada ao passado de Wakanda mesmo sendo nascido nos EUA, mas aqui ganha um pequena alteração feita com toda liberdade criativa, mas muito bem executada. Ele é um vilão com uma tragédia pessoal que justifica completamente suas ações e coloca até mesmo T'Challa e seu papel em cheque. De certa maneira, você vai os ver de maneira parecida, mas entender que são as decisões no fim do dia que separam quem é bom e mal. Um detalhe que vale a pena deixar aqui (e que nem deve ser considerado mais spoiler já que aparece no trailers) é que seu traje apesar de parecer a princípio uma cópia do Pantera Negra, tem alguma manchas douradas, detalhes que fazem lembrar suas roupas e seu mascote Prevy dos quadrinhos.

Mas o herói não seria o que é se não fosse as pessoas ao seu lado, um conselho importante dado ao seu pai em dado momento do filme. E T'Challa não poderia estar cercado por companhias melhores. Nakya é uma antiga namorada, mas que tem ainda bastante carinho por T'Challa. É diferente de sua versão dos quadrinhos (que se torna uma vilã), sendo ponderada e fiel. É quase uma mistura de Monica Lynne (da fase McGregor) com Chanté "Justiça Divina" (da fase do Priest). Okoye é uma tradicionalista, que se vê num dilema no decorrer do filme, mas entrega as melhores cenas de luta na ação. Ramonda como Rainha e Mãe (nos quadrinhos, é Madrasta) se torna uma grande conselheira na ausência de T'Chaka. Já W'Kabi, que é um dos coadjuvantes mais antigos do Pantera Negra, repete aqui a posição de amigo, mas sempre cheio de desconfiança com quem é do mundo exterior.


Mas de todos os coadjuvantes presentes, nenhum outro merece destaque maior do que Shuri, a irmã de T'Challa, uma das maiores adesões da passagem de Reginald Hudlin no Pantera Negra nos anos 2000. No filme, no entanto, deram um ar bem diferente de tudo que já fizeram antes com a princesa. Não é arisca e dura como inicialmente foi mostrada nos quadrinhos e nem mesmo sábia e mítica como Ta-Nehisi Coates vem colocando ela. Nos cinemas, Shuri (Letitia Wright) é alegre, sorridente, tem humor afiado e é um gênio da tecnologia. Isso a coloca numa posição de extremo destaque no decorrer do filme já que acaba sendo a principal condutora ao mostrar para o  público tudo que a tecnologia de Wakanda é capaz de oferecer.


Dois velhos rostos conhecidos voltam a aparecer no filme aqui. Ulysses Klaue (de novo interpretado por Andy Serkys) está ainda mais maluco, tem um upgrade a mais que certamente o pessoal dos quadrinhos já esperava encontrar e uma importância fundamental na trama e no passado de Wakanda (já pincelada em outros filmes e notória pra quem lê os quadrinhos). E Everett Ross retorna muito mais parecido com o carinha dos quadrinhos, tendo leves toques de humor ao se deparar com uma Wakanda que nunca esperaria encontrar, mas tendo uma participação constante no filme.

A mensagem final do filme é densa. Toca em temas importantes sobre como as nações de maior poder devem se posicionar no mundo. Traz uma discussão pesada sobre a relação de conquistadores e conquistados (recentemente muito bem levada aos quadrinhos por Coates) ao mesmo tempo que põe em cheque o isolacionismo de nações ao fechar os olhos pro resto do mundo enquanto ele desaba. Em meio a isso, T'Challa tem que decidir que tipo de pessoa será, e em meio a tantas perdas e revelações comprometedoras, ascender não só como rei mas como herói. Sua trajetória é de fato inspiradora, faz dele um campeão de origem clássica que olha para os novos tempos.



E, por fim, vale o aviso das duas cenas pós-creditos. Uma delas é tão ligada ao filme que merecia ser encaixada dentro do corpo dele. A outra é um chute a gol direto pra Vingadores: Guerra Infinita. Portanto, nada de sair da cadeira antes das luzes se acederem.

Coveiro

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