domingo, 4 de setembro de 2011

Em Foco: Quando o fantástico vira absurdo



Apesar de ter revistas trazendo uma grande variedade de estilos, convenhamos: a Marvel é conhecida como uma editora de quadrinhos de super-heróis. E super-heróis não vivem vidas comuns: podem fazer coisas que os seres humanos normais não podem, enfrentam desafios épicos, viajam por lugares existentes apenas nos nossos sonhos (ou nem neles). Boa parte da graça nos super-heróis está exatamente na vida fantástica que eles levam, concordam? O problema é quando as coisas começam a ficar um pouco fantásticas demais, como veremos em alguns casos aqui relembrados...



Fazer uma história de super-heróis sem elementos fantásticos não é impossível, mas seria um tanto sem graça. Por exemplo, como os Vingadores viveriam sua famosa aventura na Guerra Kree-Skrull sem viagens no espaço? Ou os X-Men teriam a ilustre história Dias de Um Futuro Esquecido sem o encontro entre futuro e presente? Mas seja por excesso de bagagem na cronologia, ou mesmo por ideias de jerico do roteirista ou do editor, a vida de alguns super-heróis acaba deixando de ser fantástica e vira ridícula, uma história que se você tentar explicar para um amigo que não lê quadrinhos, só vai conseguir fazê-lo passar bem longe das bancas com o trauma.



Vejam só a Feiticeira Escarlate, por exemplo. A moça nasceu num canto isolado do mundo e abandonada por sua mãe. Ela e seu irmão gêmeo Mercúrio passaram anos em animação suspensa, e foram criados por uma vaca antropomórfica. Descobriu que era mutante, e eventualmente ela e o irmão gêmeo entraram para um grupo mutante terrorista - cujo líder, Magneto, ambos depois descobriram ser o pai deles. Largou a vida de vilã e entrou para os Vingadores, onde acabou se apaixonando... por um androide. Casou com ele.



E como androides não podem ter filhos... ela "criou" os próprios filhos! A mulher acabou enlouquecendo quando seus filhos (quase) imaginários foram desfeitos: matou parte dos Vingadores, refez a realidade, pra depois fazer tudo voltar quase ao normal, mas tirando os poderes de quase toda a população mutante. O pior é que os gêmeos da moça talvez ainda existam - só que mais velhos, e sem terem nascido dela. Ah sim, cada um deles nascido de uma família diferente. Mas são gêmeos. Entenderam? Não? Tudo bem, nem eu entendo direito...



Outro que tem uma história bem complicada de se explicar é Scott Summers, o X-Man Ciclope. Ah, não por ele mesmo, que entre os super-heróis é até bem normal. O problema é quando lembramos da árvore genealógica de Scott:


(E essa NEM é a árvore genealógica completa...)

- Corsário (pai): pirata espacial

- Katherine Summers (mãe): morta pelo imperador de um dos maiores impérios galácticos

- Destrutor (irmão do meio): quase matou o outro irmão de Scott...

- Vulcano (irmão mais novo): ...que por sua vez, matou o pai deles e virou um déspota espacial enlouquecido

- Madelyne Pryor (primeira esposa): clone da segunda esposa de Scott; já fez pacto com um demônio e quase sacrificou o próprio filho

- Jean Grey (segunda esposa): já foi dada como morta várias vezes, até finalmente morrer de verdade; sua essência se fundiu a uma entidade cósmica em forma de uma fênix de fogo (que ainda viria a visitar muito os X-Men)

- Cable (filho): foi infectado por um vírus tecnorgânico e mandado ao futuro para se curar; virou um mercenário e voltou para o presente durão e mais velho que o próprio pai

- Conflyto (clone maligno do filho): precisa dizer mais alguma coisa?

- Rachel Summers (filha): nasceu num futuro alternativo e foi parar no presente, onde sua mãe está morta; com isso, talvez ela nunca nasça... mas existe mesmo assim (ah sim, ela também se envolveu com a entidade cósmica em forma de fênix...)

- Nate Grey (filho): filho de proveta de Scott e Jean numa realidade alternativa, eventualmente foi parar na Terra-616, onde virou uma espécie de líder/xamã mutante; já namorou Madelyne Pryor (que vale lembrar, é clone da versão alternativa da MÃE dele)

- Esperança Summers (neta adotiva): foi vista por Scott ainda recém-nascida e, cerca de um ano depois, reapareceu já na adolescência; odeia o avô, é vista como a messias do povo mutante, e - ah, sim - também parece estar envolvida com a entidade cósmica em forma de fênix

E pensar que ainda tem quem ache ruim Ciclope namorar a Emma Frost... com uma família dessas, quem devia ter medo do namoro é ela!



Se vocês pensam que histórias absurdas estão limitadas aos mutantes, enganam-se. Alguém lembra da ocasião em que o Homem de Ferro revelou ser um traidor nos Vingadores, trabalhando em parceria com o Kang? O cara chegou a matar a Jaqueta Amarela, e para detê-lo, a equipe viajou no tempo para trazer um jovem Tony Stark de um passado alternativo. Lembraram?



Se não lembraram, provavelmente também não lembrarão que o Stark do presente acabou se sacrificando para derrotar os planos de Kang e foi substituído pelo Tony mais jovem. Pelo menos até acontecer a saga Massacre (que por si só já é um belo exemplo de como a ficção pode virar absurdo) e o jovem Tony também morrer. Mas calma! Franklin Richards acabou recriando os heróis que se sacrificaram, e nessa recriação combinou o Homem de Ferro original com sua versão alternativa mais jovem e mais ética. Não é à toa que Tony está o tempo todo se distraindo com negócios, batalhas e mulheres; se ele parar pra pensar no fato de ser duas pessoas diferentes ao mesmo tempo, nem quero imaginar a crise de identidade dele.



Crise de identidade, aliás, é algo que deve ser constante com os gêmeos Brian e Betsy Braddock, também conhecidos como o patriótico herói Capitão Britânia e a X-Woman Psylocke. A começar, porque eles já nem se parecem mais gêmeos: Betsy, que já tinha sofrido uma bela bagunça em sua vida, certo dia teve sua etnia alterada e virou oriental. Bizarro? Pois é, a história poderia ter parado aí, até que a Marvel decidiu dizer que ela havia sido trocada de corpo com uma assassina japonesa.

Caso vocês tenham em mãos o primeiro volume de Os Maiores Clássicos dos X-Men e viram Wolverine reconhecer Psylocke (mesmo já na etnia oriental) pelo rosto, não estranhem, a explicação da troca de corpos piorou depois: a vilã Espiral misturou os genes dela e os da assassina japonesa, fazendo com que as duas parecessem meio como irmãs gêmeas. Exceto que, bom, uma parece oriental e a outra não. E nem vamos entrar na história de como ela trocou de poderes com Jean Grey...



Brian Braddock, o Capitão Britânia, não está em situação muito melhor. Pra começar, o cara já morreu e ressuscitou mais vezes do que se pode contar, sendo que a cada ressurreição ele é "refeito e aprimorado", fosse por uma das múltiplas personalidades de Merlin ou por sua filha Roma. Já casou com uma criatura transmorfa vinda de uma espécie de dimensão mágica - mas tudo bem, porque o pai de Brian e Betsy também veio de outra dimensão.

E já comentei que uma ex-namorada dele foi morta pela contraparte maligna da moça vinda de outra dimensão, e que ele já teve um caso com uma regente extradimensional que é outra contraparte da mesma namorada? O Capitão também já foi regente das múltiplas realidades e líder da tropa dos Capitães Britânia, embora recentemente tenha sido expulso da tropa em favor de Albion, uma contraparte maligna de outra dimensão que acabou se regenerando. Sim, ele foi expulso em favor de um ex-vilão. Mas tecnicamente o ex-vilão é ele mesmo, então está tudo bem. Acho.

E depois falam que Jamie Braddock é o estranho da família...



Nem o Quarteto Fantástico está a salvo de histórias beirando o ridículo. Entre as que já viveram, podemos destacar a da pequena Valeria Richards - ou Valeria von Doom, como ela se chamava em sua primeira aparição. Em sua primeira aparição não era tão pequena assim - ela apareceu como uma jovem adulta vindo do futuro como uma filha de Sue Storm com o Doutor Destino. Depois, a história foi mudada e Valeria era a filha de Sue e Reed Richards... exceto pelo fato de Sue ter sofrido um aborto.

Mas tudo bem, porque ela foi recriada pelo irmão (sério, o Franklin precisa parar com essa mania de recriar todo mundo) e por Roma, e acabou criada por Sue e Destino numa realidade alternativa em que ambos se casaram. Pra resumir a bagunça, durante mais uma das aventuras épicas do Quarteto, Valeria acabou sendo transformada em um feto no útero de sua mãe, e dessa vez nasceu de forma mais normal. Confesso que não sei se a pequena mas genial Valeria sabe de todo seu histórico anterior a seu nascimento. Se não souber, talvez seja o melhor mesmo.



Todos esses casos, além de vários outros, se encaixam perfeitamente na expressão "seriam cômicos se não fossem trágicos" (ou vice-versa; aqui os dois casos valem). Longe de mim querer cercear a criatividade de roteiristas e editores, graças à qual nós pudemos ler muitas histórias e sagas incríveis, aliás. Mas é importante que eles não se esqueçam de aliar a criatividade a um mínimo de bom senso. A ficção e a fantasia são ótimas aliadas para uma viagem pela imaginação; mas quando elas se afastam da realidade a tal ponto que não é possível explicar a história sem causar estranhamento e até um certo medo em seus conhecidos, e quando nós mesmos percebemos, ao contar a história, o quanto elas soam ridículas até para nós mesmos, é sinal de que a linha entre a criatividade e a total falta de lógica foi cruzada. E às vezes, só se percebe isso quando é tarde demais.

Bom, por hoje é isso. Este é meu primeiro artigo "em foco", espero que tenham gostado! No mais, deixo meus agradecimentos especiais ao Coveiro, Cammy, Jeferson, Luis Strufaldi, Ana Miguel e ao casal Juliete Sorensen e Rafael Felga; foi graças a uma conversa descontraída entre todas essas pessoas que às vezes as histórias da Marvel são ilógicas e absurdas. Mas amo a Casa das Ideias mesmo assim.

Fernando Saker

Obs.: querem mais bizarrice Marvel? Então cliquem nas três imagens na abertura deste artigo (feitas pelo talentosíssimo Joe Stone) para conferirem as curiosas e confusas ligações entre os personagens dos Vingadores, Quarteto Fantástico e X-Men. Mas já aviso: não vamos pagar conta de terapeuta, então vejam as imagens por própria conta e risco...

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