domingo, 25 de setembro de 2011

Em Foco: Reboot ou Retcon?

Aparentemente, essas palavras parecem simplesmente estar na moda nos quadrinhos de hoje em dia. Afinal, se de um lado a DC andou causando temor em seus fãs ao zerar praticamente todo seu universo após crises e mais crises nos últimos anos, a Marvel não fez muito diferente de uns tempos para cá ao pincelar seu passado com novas perspectivas graças aos seus retcons. O engraçado é que as duas estratégias parecem intimamente ligadas às suas respectivas editoras e, provavelmente, já faz parte do íntimo de seus leitores, há mais tempo do que eles possam imaginar. Bom, a ideia aqui é viajar um pouco no tempo sobre o uso destas duas ferramentas ao longo dos anos, e até mesmo buscar sua importância histórica para os quadrinhos, focando-se principalmente no Universo Marvel. Lá vamos nós!

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Antes de mais nada, vamos definir aqui bem a linha entre os dois termos. Reboot, apesar de incomum na Marvel, é um termo mais fácil de ser compreendido por todos. Trata-se de um literal e escancarado recomeço. Você simplesmente aperta um botão ou destrava um gatilho e lá se refaz toda a realidade como conhecíamos, sendo-nos apresentadas novas possibilidades a serem seguidas a partir deste novo ponto de partida. Na DC, o termo “crise” foi recorrentemente usado para esse artifício, envolvendo sempre a ameaça, destruição ou surgimento dos múltiplos universos. E nessa nova situação, aproveita-se o momento para um “ajuste” em tudo o que havia sido feito no passado e não se adequava às ideias do presente. Não sou lá bom conhecedor das histórias da DC, mas é dito que houve em suas histórias três grandes crises divisoras de águas. Claro que até então, nada chegou ao nível do que vimos acontecer com a DC em seu reboot de 2011.

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Crises e Reboots da DC

Já o termo retcon vêm da abreviação "Retroactive Continuity", que podemos entender como “informações adicionais encaixadas retroativamente na continuidade”. Retcons nada mais são do que detalhes inseridos numa trama de histórias do passado para se alcançar alguns objetivos como: torná-la mais complexa, responder incoerências em aberto, encaixar um vínculo antigo com algum fato novo do presente ou – o mais comum na Marvel – criar um artifício para ressuscitar um personagem. Veremos muitos casos desses no decorrer deste texto.

Contudo, os dois termos acabam se confundido bastante e em alguns casos até mesmo fundidos em discussões como se fosse uma única coisa. Sendo assim, vamos simplificar de tal maneira que um “reboot” seja entendido como uma mudança drástica no passado, nos conceitos bases da história, uma mudança na realidade como a conhecíamos. Enquanto que o “retcon” nada mais é do que a mesma história, sendo recontada com um pouco mais de liberdade criativa e nova perspectiva. Ou seja, um bom retcon não contradiz a história original, apenas a amplia.

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O fato é que apesar de cada vez mais repudiado pelos leitores, principalmente os “mais antigos”, poucos se lembram que o artifício do retcon está inserido na Casa das Idéias desde seu começo. Tudo isso numa confusão causada ainda na época da Timely Comics, dentro das histórias do Capitão América. As primeiras histórias do Bandeiroso foram publicadas em 1941, e mesmo fora de sua revista sua aparição perdurou até 1946 nas HQs.

Após uma baixa de popularidade, foram feitas algumas mudanças nem mesmo lembradas nos dias de hoje, e o herói voltou a figurar em histórias ao lado do Namor e do Tocha Humana em 1953 e 1954 pela editora Atlas. Daí, só voltaria a surgir em 1964, na quarta edição dos Vingadores, após ser recuperado do congelamento após uma mal sucedida missão de ataque na Segunda Guerra Mundial. Mas como isso pode ter acontecido se ele estava lutando ativamente na década de 50? Bom, fato é que inicialmente Stan Lee resolveu ignorar boa parte disto quando trouxe o personagem de volta à vida, e somente mais tarde um retcon foi feito para explicar esse equívoco, o que acarretou o surgimento dos insanos personagens do Nômade e do Capitão América dos anos 50.

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A confusão dos anos 50 resolvida graças ao retcon

A própria história de origem do Capitão foi inúmeras vezes contada e recontada após sua primeira aparição em Captain America Comics #1. Passou pelas mãos de Stan Lee, John Byrne, Ed Brubaker e tantos outros. Este último, por sinal, seguindo provavelmente a tendência do personagem de sempre ter algo a mais a se contar sobre seu passado, é conhecido atualmente na Marvel como o “Rei dos Retcons”, destacando-se principalmente por ser responsável pelo retorno de James Buchanan Barnes, o Bucky, num retcon tão bem engendrado que muitos fãs até hoje o preferem como Capitão América atual a Steve Rogers.

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Bucky Barnes: Uma nova vida para o herói com um retcon

Se for parar para contar, vamos ver que há inúmeros “retcons” ao redor do Capitão América. Comecemos pela própria história do primeiro grupo de heróis marvel, os Invasores, que nada mais são do que um belo retcon criado por Roy Thomas e Sal Buscema em 1969, bem depois da primeira edição dos Vingadores, mas que muitos hoje juram de pés juntos que seja coisa ainda da fase da Timely. Por sinal, dois personagens considerados clássicos do time, Union Jack e Spitfire, só foram criados muitos anos depois, na década de 70. Aliás, Brian Falsworth, o segundo Union Jack, é um duplo retcon, já que foi atribuída a ele uma identidade anterior de Destruidor, personagem criado na época da Timely. Peggy Carter, por exemplo, que por um tempo era considera apenas irmã mais velha da Sharon, foi singelamente elevada ao papel de “Tia”, já que seria impossível a moça esconder a idade desse jeito.

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Invasores, Union Jack/Destruidor e Sharon Carter, todos vítimas de Retcons

Numa ode aos retcons, Ed Brubaker foi o grande responsável, junto com Steve Epting, a escrever o “Projeto Marvels”, que saiu aqui pela Panini direto numa versão encadernada. Essa obra, por sinal, tem o grande mérito de pegar todos os eventos cruciais e personagens (alguns mais e outros menos conhecidos) da época da Timely e dar mais profundidade à história. Certamente uma obra prima que em nada denigre os originais, só enaltece.

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Agora que estão cientes de que os retcons estão presentes desde as raízes do universo Marvel (e não são uma modinha nova como muitos acreditavam), vamos fazer uma pequena viagem no tempo revisitando alguns retcons cruciais.

Comecemos pelos fabulosos, surpreedentes e... “imortais” X-Men. Se pararmos para pensar, os mutantes provavelmente foram os que fizeram maior uso desse artifício para trazer do limbo queridos personagens que seus fãs se recusavam a ver mortos. De cara, comecemos com a morte do Professor Xavier em X-Men 42, que somente em X-Men 65 voltaria com uma explicação que ele fora substituído pelo “Morfo” (ou Changeling, dependendo de seu gosto) para que pudesse realizar investigações particulares, deixando o vilão morrer em seu lugar. Durante a Saga da Fênix (que você pode ver em Maiores Clássicos dos X-Men 3), Jean Grey teria morrido, mas o clamor dos fãs a fez retornar e uma explicação muito forçada de que ela estaria em estase e protegida nas profundezas do rio Hudson o tempo todo, enquanto a Força Fênix é que teria tomado seu lugar. Mais recentemente, Colossus, que tinha sua margem forte de fãs que não aceitaram seu sacrifício para obter a cura do Vírus Legado, retornou graças a Joss Whedon, em Surpreedentes X-Men, numa explicação não lá muito convincente para quem teve até seu corpo cremado e as cinzas jogadas em solo russo. Por fim, nenhum outro retcon foi tão drástico na vida dos mutantes do que o promovido por Ed Brubaker (Sim, ele de novo) em X-Men Deadly Genesis, revisitando uma das histórias mais clássicas dos Mutantes da nova geração de Xavier, e assim trazendo à vida mutantes dos quais sequer tínhamos conhecimento da existência – Darwin e Vulcano, o terceiro irmão Summers. E assim aconteceu inúmeras vezes com muitos mutantes que foram e retornaram para este plano, como Jamie Madrox, Alex Summers, Psylocke, e tantos outros.

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A morte nunca é eterna graças aos Retcons

Ressurreições, no entanto, não foram as únicas desculpas para mexerem nas histórias dos X-Men. Wolverine foi um dos que teve mais adesão ao seu já complicado passado, e isso vem acontecendo até hoje nas histórias de Wolverine Origins, já que ninguém mais sabe direito quem era o homem por trás do projeto Arma X – O Professor, John Sublime ou Romulus? Enquanto que, em um dado momento, tudo nos levava a crer que Dentes de Sabre era seu pai, roteiristas modificaram o plano de Chris Claremont na época e refizeram todo seu passado como James Howlett. Isso sem falar em histórias que o colocavam como um verdadeiro "Mogli" das florestas canadenses. Nem mesmo suas garras escaparam, tornando-se parte de seus poderes mutantes a partir do final da saga “Atrações Fatais”. Se pararmos para enumerar só com o baixinho canadense, faremos uma lista grande.

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Quem é o verdadeiro manipulador do projeto Arma X?

Magneto também é outro, que foi bastante rejuvenescido desde seu tempo enquanto encarcerado pelos Nazistas no campo de concentração judeu. E assim como sua história, lá se foi sua identidade, passando de Magnus para Erik Lensheer, até finalmente ganhar um nome judeu, Max Eisenhardt. Por sinal, o tempo é cruel para as origens de alguns personagens, que muitas vezes precisam mudar até as guerras (e outros eventos) de referência para que não sejam tão envelhecidos, como é o caso de Cain Marko e Xavier, que lutaram na Guerra da Coréia, e Tony Stark, ferido num teste de armas nas batalhas no Vietnam. Em algumas recontagens de suas origens, tenta-se estabelecer essas ligações com eventos mais contemporâneos, mas nenhuma delas firma-se como permanente. O mesmo vale para a Jessica Drew, a mulher-aranha, que recentemente teve uma minissérie recontando sua origem.

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O passado de Magneto sempre revisitado

E já que passamos para a parte de passado e origens remodeladas, vamos falar de um retcon de sucesso na Marvel. As histórias do Demolidor no começo dos anos 80 ficaram por conta do roteiro ágil de Frank Miller, que colocou novos elementos no passado de Matt Murdock, vinculando todo seu aprendizado aos treinamentos com o misterioso Mestre Stick e inserindo um romance selvagem na época de faculdade com a indomada Elektra.

Já não tão bem sucedido com este artifício, temos o Homem-Aranha, que sempre leva a fama de azarão. O primeiro retcon mais drástico na vida do Cabeça de Teia, da qual todos devem se lembrar, é a primeira saga dos clones, quando numa tentativa de trazer Gwen Stacy de volta à vida, foi revelado um amor platônico que o professor universitário Miles Warren (que vocês conhecem com o Chacal) sentia pela moça. Isso levou a uma confusão dos diabos com clones, concluindo com uma perturbadora ideia pairando na cabeça de Parker, de que ele poderia não ser o Aranha original. Muito mais tarde, alguém retomou o plot, causando ainda mais confusões na trama, trazendo não só um novo Homem-Aranha na parada, assim como um novo clone da Gwen Stacy e a ressurreição do temível Norman Osborn. Nem mesmo a tia May, que mal tinha acabado de morrer, escapou desta, e voltou da terra dos pés juntos com uma explicação furada e destruindo um dos poucos momentos bons desta saga.

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As consequências dos retcons da Saga do Clone

Com o fim deste arco confuso, as tentativas para melhorar a situação complicada de Peter Parker não foram muito felizes. Numa trama deixada pelos antigos roteiristas, um plot foi montado onde teríamos uma filha desaparecida de Parker sob os cuidados do misterioso Kaine, algo que nunca foi bem aceito pelo roteirista J. Michael Straczynski, que assumiu o Aranha em 2001. Então, esse evento foi simplesmente esquecido nas histórias. Contudo, Straczynski marcaria seu momento como escritor do Homem-Aranha pela primeira vez num arco não muito feliz, justificado por um retcon quase impossível de assimilar – Os filhos de Gwen Stacy com Norman Osborn. A pobre loira realmente não descansou após a morte, e seu passado foi revirado, numa trama complicada na qual foi inserido um romance dela com o Duende Verde no curto tempo em que passou na Europa enquanto se recuperava da morte de seu pai. Isso resultou em uma gravidez rápida e incomum, da qual nasceram Gabriel e Sarah Stacy, como mostrado no arco “Pecados Pretéritos”.

Mas nada se compararia ao que nos aguardava no final da passagem de JMS pelo Cabeça de Teia. E em “Um dia a mais”, tudo foi revirado na vida do herói desde seu casamento. Na verdade, do seu não-casamento, já que Straczynski criou a primeira realidade alternativa inserida dentro do universo regular, desmontando assim situações até então clássicas, como a morte de Harry Osborn e a revelação da identidade do Herói em Guerra Civil. Essa ação, que foi bastante polêmica por si só, mais tarde foi justificada pelo próprio Joe Quesada, confessando que realmente foi algo feito de modo muito precipitado. Contudo, a marca já foi deixada.

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Mais confusões ao revirar o passado do Teioso...

Os Vingadores também não se distanciam muito disso aí. Lembrando de alguns casos clássicos, temos o da Viúva Negra, que de mera vilã sensual da antiga URSS, passou a ter seu passado amarrado com o Capitão América e Wolverine em plena Segunda Guerra Mundial. O herói Magnum, que tinha morrido e sua única permanência no universo Marvel residia nos seus padrões mentais inseridos no corpo sintozóide do Visão, retornou dos mortos criando um extenuante e melancólico triângulo amoroso com a Feiticeira Escarlate e seu marido nas histórias dos Vingadores. A Harpia, que até então tinha uma das mais tocantes mortes das HQs, foi resgatada do limbo durante a Invasão Secreta, dando outra explicação para sua morte (que acabou não sendo verdadeira) nos braços de Clint Barton. E nem vilões escapam. Afinal, a desfiguração de Victor Von Doom veio de um acidente em um experimento, ou porque ele apressou-se em colocar a máscara de metal quente em seu rosto, descarnando-o imediatamente?

Em outro exemplo, o super-herói Sentinela nada mais é do que um grande retcon ambulante que foi inserido no passado do universo Marvel numa minissérie especial lançada em 2000, somente para ser esquecido no final dela, e voltar anos depois pelas mãos de Brian Michael Bendis nos Novos Vingadores. Outra que acabou entrando na mesma ideia de personagem inserida “retroativamente” no passado da Marvel é a Jessica Jones, a Safira, estreando em 2001 na série Alias.

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Sáfira e Sentinela, dois retcons ambulantes


A maior marca dos retcons do novo século surgiu, no entanto, após a Queda dos Vingadores, com a revelação das reuniões secretas dos Illuminati. Desde que esses encontros, desconhecidos até então para leitores e para a maioria dos roteiristas, foram escancarados, uma nova perspectiva foi aberta para que tudo tivesse uma nova abordagem em vários momentos cruciais das sagas da Casa das Idéias.

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Illuminati: uma série de aventuras inseridas retroativamente

É óbvio que a DC Comics também teve em alguns momentos os seus retcons, como foi o caso do parentesco de Barbara Gordon com o comissário, e a revelação da verdadeira natureza de Parallax. Mas a maioria deles sempre esteve em mudanças mais radicais, ligados a mudanças atreladas a alguma Crise que permitisse reformatar tudo. Mas será que podemos isentar a Marvel desta prática também? Bem, na verdade, não. Isso já aconteceu uma vez e vocês devem se lembrar do fatídico momento que estou falando...

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Sim, Heróis Renascem... o que poderia ser?

Bem, parece que a única tentativa de fato da Marvel rebootar seu universo justifica toda a aversão da editora e de seus leitores a tentar algo semelhante de novo. E olha que estavam usando um corpo de artistas considerados top de linha na época (e que mais uma vez estão envolvidos com a mudança da DC), e que apenas mexeram em parte do universo dos super-heróis que conhecemos. Contudo, o resultado foi tão catastrófico que só em ouvir falar na palavra “reboot”, todo fã Marvel de mais de 10 anos sente seus pêlos arrepiarem até a ponta.

É estranho até mesmo traçar e reforçar essas diferenças entre as duas principais editoras de quadrinhos, principalmente porque no final tudo está relacionado à temática de super-heróis, mas a grande divisão que acaba surgindo entre Marvetes e DCnautas não se resume apenas a preferências por determinados heróis, mas também pela maneira de se contar histórias. Cada um acabou se acostumando com o jeito delas, e, consequentemente, com os artifícios mais usados por elas. O que não inibe, claro, viajar pelos dois universos. Mas todo mundo sabe que sempre há uma preferência, no final. E qual é no seu caso, Reboot ou Retcon?

Coveiro

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