quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Em Foco: A negra jornada dos heróis com rosto negro [Reprise 2013]

Artigo escrito por nosso colaborador Fábio Cabral!! 
Atenção para o aviso de spoiler ao longo do texto!


“O mito é um sonho coletivo; o sonho, um mito pessoal”.

Há exatos dois anos, iniciamos os trabalhos no texto original da jornada dos heróis com rosto negro.

E a jornada continua. Representação importa, e muito. A criança preta teve de crescer contando nos dedos de uma única mão quantos heróis escuros existiam, quantas eram aquelas figuras poderosas nas quais poderia se espelhar para se tornar, também, uma pessoa notável. Por que hoje temos um filme do Thor e não um do Xangô? Como seria a aceitação do público se o Capitão América não fosse o loiro Steve Rogers e sim o negro Isaiah Bradley? Por que é difícil aceitar que o próximo Tocha Humana nos vindouros filmes seja negro? Por que tamanha fúria contra o negro Miles Morales após a morte do Homem Aranha original, Peter Parker?

Isaiah Bradley
Os primeiros gibis ignoravam a diversidade étnica do mundo. Ou apresentavam as etnias humanas como deboche ou sátira. Reflexos das visões estreitas, preconceituosas e racistas da época. Infelizmente, tal visão deturpada ainda ecoa nos dias de hoje. O trauma afrodescendente ainda persiste. A comunidade super-heroica dos quadrinhos ainda não reflete a realidade dos tantos rostos negros que vemos nas ruas. "Ah, é fantasia", você diz. Mas a fantasia é simulacro da realidade; a fantasia, ou seja, o mito, representa os desejos e anseios do imaginário coletivo, e por meio das aventuras do imaginário somos capazes de vencer as desventuras da realidade.

Por isso, insistimos que representação importa, e muito, para os descendentes do maior genocídio de que esta Terra teve notícia.

Tempestade, Pantera Negra, Luke Cage, Capitã Marvel (Mônica Rambeau). Talvez os maiores representandes de rosto negro da editora Marvel. Motivo de orgulho? Apenas pense como seria se fosse o contrário: como seria se os de pele branca tivessem apenas uma Jean Grey como representante dentre todo o time de X-Men mais notáveis. Pense como seriam para você os Vingadores agora tão em evidência com filmes pomposos se pessoa branca alguma houvesse no filme. Já pensou num filme do deus do trovão Xangô na santa terra de Ifá com um Ogum guardião dos caminhos como única pessoa branca do filme? Já tentou imaginar como você se sentiria observando impotente que os heróis mais famosos e antigos da editora fossem pretos, apenas pretos? Se sentiria minimamente feliz se o quarteto da família famosa e tradicional tivesse um branquinho no filme contemporâneo, numa tentativa tardia e insuficiente de reparação?

Xangô
SPOILER: E então temos os novíssimos Mighty Avengers. Vejam só, dos nove membros, sete são negros. Devemos soltar fogos? Gritar de alegria? Não. Ou você não acha estranho que uma equipe em que cerca de 85% de seus membros são negros chame bastante atenção enquanto é considerado “normal” todas as demais trocentas equipes praticamente 100% compostas por brancos. Isso reflete a realidade?


Esses pretos só podem estar exagerando, não? Fazendo-se de vítimas, enchendo o saco com essas lamúrias! Absurdo! Claro.

Absurdo é quando nos falam que descendemos de escravos e não de pessoas escravizadas. Quando nos falam para chutar que é macumba, mas se horrorizam quando a santa católica é chutada na TV. Quando nos falam que o nosso cabelo é duro. Quando falam asneiras de cota racial e dizem que isso é racismo. Quando falam de racismo sem saber o que diabos estão falando. Quando vocês citam Joaquim Barbosa e Barack Obama sem parar para pensar que são malditas exceções das exceções que tiveram de se matar e ser um trilhão de vezes melhores que os outros para chegar lá. Quando ignoram ou minimizam que a maioria dos pretos está nas favelas, estão agachados limpando o chão e servindo cafezinho. Quando somos forçados a estudar as peripécias do rei francês Luís XIV e tantos outros europeus e não temos uma única linha sobre a rainha Nzinga e o monarca Mwana Ngana Ndumba Tembo. Quando acham que preto dirigindo carro só pode ser ladrão. Quando falam que bandido tem tudo que morrer mesmo enquanto quem é preso e morre nas mãos da polícia é o preto pobre, enquanto o filho do ricaço atropela e mata e continua solto, jornalista mata namorada pelas costas e continua solto. Quando falam que somos todos seres humanos enquanto nossa humanidade preta continua sendo morta nas ruas e vielas e tendo de ser um trilhão de vezes melhor que os demais para serem minimamente aceitos. Quando não vêm problema em clube português, bairro japonês e festa alemã mas falam que é racismo quando tem coletivo de preto, quando tem revista só de preto e evento só para preto. Quando acham normal um restaurante chamado Senzala mas jamais permitiriam que se chamasse Auschwitz.

Pois é.

Idie
Por isso, é importantíssimo sim que haja mais e mais heróis com rosto negro. Heróis com rosto africano. Vivenciar o mito dos ancestrais suaviza os traumas do presente. Negra é a nossa jornada da alma, em busca de força e coragem contra as hostilidades do mundo. A fantasia e o mito são absolutamente reais, não como fatos e sim como metáforas, não como física e sim como metafísica. E é por isso que nos entendemos mais poderosos quando saboreamos a força de caráter e integridade da Tempestade, a inteligência e a majestade do Pantera Negra, a personalidade e coragem do Luke Cage, o brilho e poder da Capitã Marvel, o aprendizado e superação da Idie, a persistência e convicção do Bishop e tantos outros, ainda que poucos, mas que representam a jornada de todo um povo.

Somos poderosos. Somos heróis.

Fábio Kabral

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