Artigo escrito por nosso colaborador Fábio Cabral!!
Atenção para o aviso de spoiler ao longo do texto!
“O
mito é um sonho coletivo; o sonho, um mito pessoal”.
Há exatos dois anos, iniciamos os trabalhos
no texto original da jornada dos heróis com rosto negro.
E a jornada continua. Representação importa,
e muito. A criança preta teve de crescer contando nos dedos de uma única mão quantos heróis escuros existiam, quantas eram aquelas figuras poderosas nas
quais poderia se espelhar para se tornar, também, uma pessoa notável. Por que
hoje temos um filme do Thor e não um
do Xangô? Como seria a aceitação do
público se o Capitão América não
fosse o loiro Steve Rogers e sim o
negro Isaiah Bradley? Por que é
difícil aceitar que o próximo Tocha
Humana nos vindouros filmes seja negro? Por que tamanha fúria contra o
negro Miles Morales após a morte do Homem Aranha original, Peter Parker?
Os primeiros gibis ignoravam a diversidade
étnica do mundo. Ou apresentavam as etnias humanas como deboche ou sátira.
Reflexos das visões estreitas, preconceituosas e racistas da época.
Infelizmente, tal visão deturpada ainda ecoa nos dias de hoje. O trauma
afrodescendente ainda persiste. A comunidade super-heroica dos quadrinhos ainda
não reflete a realidade dos tantos rostos negros que vemos nas ruas. "Ah, é
fantasia", você diz. Mas a fantasia é simulacro da realidade; a fantasia, ou
seja, o mito, representa os desejos e anseios do imaginário coletivo, e por
meio das aventuras do imaginário somos capazes de vencer as desventuras da
realidade.
Por isso, insistimos que representação
importa, e muito, para os descendentes do maior genocídio de que esta Terra
teve notícia.
Tempestade,
Pantera Negra, Luke Cage, Capitã Marvel
(Mônica Rambeau). Talvez os maiores representandes de rosto negro da
editora Marvel. Motivo de orgulho? Apenas pense como seria se fosse o
contrário: como seria se os de pele branca tivessem apenas uma Jean Grey como representante dentre
todo o time de X-Men mais notáveis.
Pense como seriam para você os Vingadores
agora tão em evidência com filmes pomposos se pessoa branca alguma houvesse no
filme. Já pensou num filme do deus do trovão Xangô na santa terra de Ifá com um
Ogum guardião dos caminhos como única pessoa branca do filme? Já tentou
imaginar como você se sentiria observando impotente que os heróis mais famosos
e antigos da editora fossem pretos, apenas pretos? Se sentiria minimamente feliz
se o quarteto da família famosa e tradicional tivesse um branquinho no filme
contemporâneo, numa tentativa tardia e insuficiente de reparação?
Xangô |
Esses pretos só podem estar exagerando, não? Fazendo-se de vítimas,
enchendo o saco com essas lamúrias! Absurdo! Claro.
Absurdo é quando nos falam que descendemos de escravos e não de pessoas escravizadas.
Quando nos falam para chutar que é macumba, mas se horrorizam quando a santa
católica é chutada na TV. Quando nos falam que o nosso cabelo é duro. Quando
falam asneiras de cota racial e dizem que isso é racismo. Quando falam de
racismo sem saber o que diabos estão falando. Quando vocês citam Joaquim
Barbosa e Barack Obama sem parar para pensar que são malditas exceções das
exceções que tiveram de se matar e ser um trilhão de vezes melhores que os
outros para chegar lá. Quando ignoram ou minimizam que a maioria dos pretos
está nas favelas, estão agachados limpando o chão e servindo cafezinho. Quando
somos forçados a estudar as peripécias do rei francês Luís XIV e tantos outros
europeus e não temos uma única linha sobre a rainha Nzinga e o monarca Mwana
Ngana Ndumba Tembo. Quando acham que preto dirigindo carro só pode ser ladrão.
Quando falam que bandido tem tudo que morrer mesmo enquanto quem é preso e
morre nas mãos da polícia é o preto pobre, enquanto o filho do ricaço atropela
e mata e continua solto, jornalista mata namorada pelas costas e continua
solto. Quando falam que somos todos seres humanos enquanto nossa humanidade
preta continua sendo morta nas ruas e vielas e tendo de ser um trilhão de vezes
melhor que os demais para serem minimamente aceitos. Quando não vêm problema em
clube português, bairro japonês e festa alemã mas falam que é racismo quando
tem coletivo de preto, quando tem revista só de preto e evento só para preto.
Quando acham normal um restaurante chamado Senzala mas jamais permitiriam que
se chamasse Auschwitz.
Pois é.
Idie |
Somos poderosos. Somos heróis.
Fábio Kabral