domingo, 1 de março de 2015

Em Foco: Quero ler Super-Heróis! Mas como começar?


Se eu fosse enumerar aqui uma lista de perguntas mais frequentes que recebemos por email nesta quase uma década de site, certamente a que estaria lá em cima entre as primeiras colocações seria essa do nosso título.  E tal questão, que sinaliza um o crescente interesse de um novo público que chega ao mercado dos comics de super-heróis, vem sempre acompanhando de um probleminha que se resume a "como introduzir e manter esses novos leitores?"

Venho pensando nessa resposta faz algum tempo. Talvez de tanto responder a emails ou mesmo dar sugestões pessoalmente quando encontro amigos interessados ou desconhecidos que acabo conhecendo nas comics shops da vida, venho percebendo que a solução é bem simples apesar de que a explicação dessa resposta é muito mais complexa do que outrora eu acreditava.  Vendo a importância do tema para as novas gerações, eu pensei que seria uma ótima oportunidade de voltar com um  ‘Em Foco’ do nosso site para isso. Ou talvez, eu simplesmente queira dar uma resposta final para o tema sempre que alguém me fizer essa pergunta de novo num email. Vamos ver se consigo ser feliz nessa empreitada...


Ninguém começa do começo

Essa simples ideia parece assustar de cara o leitor novato porque a principio parece absurda e ilógica pra qualquer um fora deste mundo. Imagine só você sugerir a uma pessoa que comece a ler uma sequência de livros pelo meio da história? Compre a partir do volume três de Crônicas do Gelo e do Fogo ou comece a ler Harry Potter já pelo quinto livro. Absurdo?! Não, não exatamente se passarmos para mídia dos quadrinhos de super-heróis americanos. Diferente de outras leituras, os comics de super-heróis são uma mídia seriada que é publicada mensalmente há mais de setenta anos em alguns casos e muitos desses personagens chegam a ter hoje em dia mais de duas ou três revistas mensais interligadas. Se o seu plano for “começar do começo” e correr contra o “tempo perdido” para chegar até o que se tem publicado nos dias de hoje, simplesmente esqueça. Você vai acabar perdendo essa corrida... ou se desgastando tanto neste trabalho que perderá a graça e o prazer da leitura.

Quando ouço  de canto alguém numa loja de quadrinhos pedindo o número 1 dos X-men ou a primeira revista do Homem-Aranha eu quase sempre faço as vezes de intrometido e falo “não faça isso, cara”. Entendo que nesses casos a pessoa precisa de alguma orientação, alguém que certamente não teve até então experiência nenhuma com quadrinhos ou até mesmo pode ter se aventurado em mangás, que geralmente tem um perfil de história bem diferente e acaba sendo mais fácil de acompanhar desde o "começo". É meio que um choque para a pessoa, principalmente quando a minha oferta é apenas para ela começar com qualquer boa história que ouviu falar.  Uma boa história – se for bem feita e cativante – é o suficiente para te conquistar no mundo dos quadrinhos. É tudo que você precisa para começar e nunca mais parar.

Geralmente, eu faço um paralelo simples que quase sempre funciona: Começar a ler quadrinhos de super-heróis é como fazer amizade com uma pessoa. Ninguém chega pra um indivíduo e a primeira pergunta que faz é “Olá! Que dia você nasceu?”ou “quais foram suas primeiras experiências no começo da sua vida?”.  Isso são perguntas que você só faz depois, quando você realmente cria uma afinidade maior com a pessoa depois de ter conversado sobre assuntos em comum e de mesmo interesse. Daí, a partir deste momento, quando forma um vínculo, você acaba sabendo mais sobre histórias do seu passado e passa a acompanhar sua vida daqui pro futuro. É exatamente assim que funciona nos quadrinhos.  Uma história vai te cativar primeiro e quando você menos esperar vai estar correndo atrás de algumas edições antigas para entender mais o que está acontecendo e em muitos momentos vai estar ansioso pelo próximo mês para finalmente ir a banca.

Foi assim comigo também. Foi com um monte de gente. Vai ser assim – de forma natural – com você! Você vai contar nos dedos quem conheceu seu personagem favorito a partir da primeira história dele.


Histórias foram feitas para seu tempo. Mas é igualmente divertido voltar atrás.

Quando citei personagens com mais de setenta anos em revistas sequenciais,  tenho certeza que muita gente ainda não pegou a dimensão da coisa. Capitão América, por exemplo, apareceu em mais de 8 mil revistas até os dias de hoje (isso inclui, participações em outros títulos). O Homem-Aranha, que sempre teve mais títulos mensais, chega a mais de 10 mil histórias. Se pegarmos personagens mais longevos da DC Comics ponha mais algumas milhas. São muitas revistas para se por em dia, são muitas décadas para ser revisitadas. Mas – de novo – você não é obrigado a correr atrás de toda essas histórias. Preste mais atenção ao que está sendo apresentado hoje a você.

Parte do que é interessante das historias de super-heróis é acompanhar a novela seriada que se desenrola mês a mês. Uma boa trama executada pode te garantir divertimento único a cada virada de página da sua revista e te fazer xingar as favas quando no final você lê um  “continua na próxima edição”. Esse efeito remete a clássicos da literatura como os de Charles Dickens que publicava algumas de suas histórias de forma seriada de tal forma que contagiava os leitores que mal podiam esperar pela continuação dos próximos volumes. Lembro que Stephen King citou em determinado prefácio que num dos casos extremos houve leitores de Dickens que chegaram até a cair na água e quase se afogar quando ficaram alvoroçados com a chegada de um novo volume que aguardavam num porto de Batimore no século XIX. O próprio King experimentou esse efeito de publicações seriadas algumas vezes com seu “A Espera de um Milagre” e seus recentes romances online  como o “The Plant”.

Esse efeito excitante é parte da magia que as histórias seriadas devem ter para a geração a qual se destina. Desde a Era de Prata, mesmo quando as histórias tentavam manter sua individualidade naquela edição, havia sempre um instigante “Na próxima edição...” que saltava aos nossos olhos. Enquanto lemos, mal nos damos conta que naquelas poucas 22 páginas há toda uma reflexão, que vai da arte ao roteiro,  de como alcançar o efeito e linguagem certa pro público dos dias de hoje. Você pode nem se dar conta da quantidade de mãos de profissionais que uma simples história foi cuidada pra maturar e chegar até você.

Em contrapartida, pode ser um choque a primeira vista quando um novo leitor pela primeira vez se depara com uma história de duas ou três décadas atrás de seu personagem favorito. Apesar de ser uma figura familiar, a formatação como foi concebida, o traço diferente ou coloração chapada, o jeito de falar dos coadjuvantes, os pensamentos que rodeavam a cabeça do seu herói, tudo isso simplesmente não se encaixa. Esse problema, no entanto, não é algo inerente a história, mas sim da falta de um preparo pessoal para como experimentá-la. Quando voltamos uma ou duas décadas no passado para ler uma história, temos que justamente estar um pouco mais cientes de que ela foi preparada para outro público e ser vivenciada por uma outra geração. E aí vai um exercício bom para se praticar quando se aventura numa “viagem no tempo” nos quadrinhos, em que precisamos entender mais não só a história per si, mas a cabeça de quem era seu leitor-alvo. De repente, com essa perspectiva posta, somos surpreendidos ao ver que algumas revistas foram simplesmente revolucionárias comparadas aos dias de hoje.

Infelizmente, esse efeito acontece de um modo reverso quando a velha geração 'envelhece' ao ponto renegar a nova. Apesar de muitas vezes compreensível, falta o mesmo "preparo pessoal" que citei acima. Por isso, quase sempre sugiro aos "novatos" pra fugir de pelejas do tipo. Deixe a opiniões dos outros de lado e busque seu lazer com a boa e velha leitura.

Eu vim de outra mídia!  Prepare-se para algo completamente novo!

Com tantos filmes, desenhos e jogos, como seria diferente?! É quase certo que a grande maioria absoluta teve contato pela primeira vez com esses personagens fantásticos através de outras mídias. Talvez, nós, velhacos, não confessemos, mas certamente só viemos a conhecer esses personagens por outros meios. É muito raro acontecer diferente. Seria necessário o seu pai ou tio ter sido um leitor inveterado que continuou a colecionar os gibizinhos de heróis além da adolescência.  E esse ainda é um numero de pessoas muito pequeno ainda, acredite.

Eu, particularmente, me recordo de só ter contato com o Homem-Aranha pela primeira vez no desenho antigo em que ele dividia a casa da Tia May com seus “Espetaculares Amigos” Homem de Gelo e Estrela de Fogo (rebatizada nos quadrinhos de Flama); Quando conheci os X-Men, eles não passavam de um grupo esquisito – ainda mais com aquele elfo negro - que ficava na maquina do fliperama mais esquecida do canto do Playstation. E foi com muita surpresa que me deparei depois de certa idade com uma fotografia em que estava vestido de Capitão America aos dois anos apenas (ou seja, eu nem me recordo direito, mas devo ter visto também os desenhos desanimados da Marvel). Sem todos esses elementos de outras mídias, certamente meu contato com esses super-heróis seria muito mais tardio e difícil.


Agora, não vivemos um caso tão diferente do que era tempos atrás. O que muda apenas é a força e acessibilidade que essas mídias conquistaram neste novo século. No que diz respeito particularmente a Marvel, temos algo inédito com o impacto dos heróis do cinema. E não há como negar que isso certamente respinga no mercado de quadrinhos impresso. Já foi dito mais de uma vez pelos editores nacionais que na época dos filmes as vendas das revistas sobem no mês de lançamento nos cinemas. Talvez, o maior problema esteja em como manter os novos leitores depois do hype.

E entra aqui talvez o maior choque na transição entre mídias - as mudanças, a adaptação. A garotada quase sempre chega com sede por mais histórias que partam exatamente do ponto que acabaram de conhecer aqueles personagens do cinema e o que encontram são histórias completamente diferentes das concepções de sua adaptação cinematográfica e até mesmo personagens completamente diferentes do que estão hoje nas telonas. Mas o que pode ser uma decepção inicialmente poderá virar algo a mais se você der uma segunda chance.  Se você se permitir ainda na leitura, vai perceber que os principais elementos que conceberam aquele personagem ainda vão estar lá, nas suas raízes. E com o tempo, o que se nota é que ao invés de um herói que você estava acompanhando, serão dois. Ou três, quatro, se ainda incluirmos aqui o mundo das animações e games.

Todos esses mundos transmídias são iguais e diferentes ao mesmo tempo. Não existe a história certa ou a errada. São mundos particulares em que seus criadores, escritores, diretores e animadores depositam a sua concepção daquilo que entendem sobre o mesmo personagem. Talvez a grande diferença dos quadrinhos é que de todas as mídias, essa é aquela que você acaba tendo mais a sensação de proximidade. Parte da magia naquelas páginas, que ao você ler imagina tons de vozes e movimentos, é sua criatividade que fornece.


A linha entre a leitura e o colecionismo

Quase sempre essas duas premissas vem atreladas uma a outra, ditas por alguns até mesmo incapazes de se separar. A imagem de um leitor de quadrinhos muitas vezes vai estar ligada aquela estante bonita no quarto, espanada toda semana e com um cheirinho de nossa história pessoal. Quando passa para o status de colecionador, a pessoa está galgando aqui provavelmente a etapa mais difícil do hobby (ok, talvez a mais difícil depois de ter um site especializado! Sim, estou sendo dramático). O colecionador antes de mais nada deve estar a par de que terá custos onerosos e uma eterna luta por espaço.  E tudo tende a ficar mais difícil se for uma coleção dentro do Universo dos Super-heróis.

A primeira coisa a saber é que este é um mundo ilimitado, em ambas as pontas praticamente. Diferente do que ocorre com muito da linha mangá, não há propriamente um fim para essas séries (como já  comentei acima). Às vezes, temos até o encerramento de um volume, mas é quase certo que seu personagem preferido recomece uma nova série ou pule pra uma outra revista pré-existente. Por sua vez, voltando os olhos para trás, é comum que dado personagem nem ao menos tenha começado no número 1 de uma revista com seu nome. O Homem-Aranha apareceu em Amazing Fantasy 15, já o Homem de Ferro em Tales of Suspense 39. Por sinal, é importante saber que nem sempre ter uma coleção interessante é ter todos os números seriados, mas talvez ter essas particularidades raras e especiais.

E já que esse mundo é ilimitado, vale ressaltar que é você quem tem que por seus limites. Sendo assim, tente definir seus interesses de compra naquilo que realmente gosta e te satisfaça como lazer. Você pode se limitar a alguns personagens, microuniversos dentro da editora, trabalhos específicos de autores, formatação de publicações, há muitas opções. Como dito antes, é praticamente impossível você ler tudo que já foi feito e publicado desde o começo, portanto, ainda mais impensável de se colecionar. Geralmente, dentro de um planejamento, é possível ter uma coleção bacana  que te de tanto prazer em manter quanto a leitura. E tente não fazer como eu, que acaba colecionando uma pilha cada vez maior de material sequer lido. Lembre-se que sua missão é o prazer da leitura acima de tudo. Como diria meu amigo André Cappela, "tenha cautela, parceiro!" 



Uma fala final

Diferente do americano, o mercado brasileiro de super-heróis ainda tem muito o que percorrer para atender melhor o público. Mas o mais importante é que vem dando sinais de melhoras nos últimos anos. Quando outrora muitas revistas acabavam descontinuadas por falta de público, hoje temos até mesmo o espaço nas bancas para coleções históricas do século passado, reedições de publicações mais recentes e material de luxo, o que atende mais ao jovem leitor que pode ter acesso tanto a antigas histórias como arcos fechados. É um bom jeito para começar sem ficar perdido.

Falta ainda - é claro - uma expansão pros diferentes tipos de públicos, mas isso é algo que a própria editora americana tem dificuldade. Revistas com interpretações mais infantis dos personagens – como a Marvel Adventures – já tentaram fincar o pé aqui, mas acabaram descontinuadas. O material para atender o público feminino ainda é desproporcional, mas é bom saber que há esforços da Marvel lá fora em ter mensais como a nova Miss Marvel que parecem estar caminhando bem pra mudar essa direção.


Por último, se serve de algum consolo, nunca se deixe levar pela primeira experiência com quadrinhos se ela não te brilhou os olhos. Como quase tudo, nem sempre você se apaixona pela primeira vez. E se quer a resposta curta para a questão do nosso título, eu digo "Apenas comece a ler. E leia outra vez".

Coveiro

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