segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Resenha 616: Manto e Adaga - A Primeira Temporada



Levar dois personagens tão obscuros como Manto e Adaga para a TV poderia de muitas maneiras ser um caminho sem parada para o fracasso de audiência, principalmente quando a primeira vista a premissa do seriado era atingir o público jovem adulto e sair no canal freeform. Há quem apostasse que não passaria de um romance juvenil bem enjoativo. Há quem acreditasse que seria apenas mais do mesmo em uma série de super-poderes com os personagens sendo tratados de forma pueril. Contudo, quem estava encabeçando o projeto era Joe Pokaski, um dos co-produtores executivos da primeira temporada de Demolidor e responsável também pela primeira temporada da série Underground e escritor de alguns episódios de CSI. Enfim, um nome experiente. Era alguém que não iria fazer de Manto e Adaga qualquer coisa. Ele entendeu o cerne dos personagens e transformou essa série na única coisa que poderia ser - uma tragédia.

Nos quadrinhos, Manto e Adaga são dois fugitivos de seus lares, acabam se tornando vítimas de um mesmo experimento com químicos e seus poderes mutantes dormentes florescem juntos, e coincidentemente complementares. Representando a luz e a escuridão, são vistos como opostos, mas ao mesmo tempo dependentes um do outro. Todo tom de história onde Manto e Adaga são protagonistas, emana um ar decadente, deprimente, vazio, quase fúnebre. Levar isso a uma série para adolescentes a primeira vista parece ser um contra senso, mas sem se ater a aparências clichês, Pokaski entendeu que para muitos jovens, num mundo muito real e duro, algumas fases da nossa vida nessa época pode transparecer bem isso que os personagens carregam.


Assim, coube ao produtor trazer dois jovens muito talentosos como Olivia Holt no papel de Tandy Bowen (já bem querida nas séries adolescentes da Disney como Kickin'it e I didn't do it) e Aubrey Joseph como Tyrone Johnson (rapper e ator iniciante em produções como The Night of e Run All Night) para segurar as pontas do drama carregado nesta série. Os dois são marcados por um passado com a maior tragédia pessoal de suas vidas seguidos de uma experiência de quase morte e vítimas de um acidente estranho oriundo de uma plataforma de uma filial da Roxxon em Nova Orleans. Deste acidente, os dois manifestaram seus dons e se viram pela primeira vez, quase como num sonho. Depois, se separam e seguiram suas vidas que praticamente calharam de serem opostos exatos um do outro.

Tyrone viu seu irmão Billy morrer ao ser alvejado por um policial inescrupuloso que o julgou a primeira vista como um arrombador de carros, tentou salvá-lo quando o corpo foi parar no fundo das águas, mas foi em vão. Ao afundar, no entanto, o garoto foi atingido pela onda de energia fruto de uma explosão de uma plataforma da Roxxon e sobreviveu por um milagre. Seus pais Otis e Adina (Miles Mussenden e Gloria Reuben), apesar de arrasados com o fato, seguiram em frente e até mesmo se estabeleceram bem financeiramente. Contudo, nunca deram a devida atenção ao fato de que Tyrone jurava de pé junto que seu irmão foi assassinado por um policial. Tyrone praticamente cresceu numa redoma, sendo tratado da melhor forma possível quase que como tentando compensar a tragédia do outro filho. Ou evitar que a mesma coisa se repetisse. 

Já Tandy era a filhinha que amava o pai, um dos grandes cabeças da pesquisa realizada pela Roxxon em Nova Orleans. Um acidente de carro, no entanto, levou o homem a se afogar quando o veículo saiu da estrada e Tandy sobreviveu também por um milagre. Assim como Tyrone, a menina foi atingida pela energia estranha e só foi muito mais tarde acordar numa praia. Viu o garotinho de moleton e capuz maior que seu tamanho ao seu lado e fugiu com a roupa dele a procura de ajuda. Dias depois, em casa, descobriu que a Roxxon culpava seu pai pelos erros que levou ao acidente e não tiveram a partir daí direito a mais nada. Desde então, a vida de Tandy tem sido uma encrenca. A garota tornou-se uma viciada, golpista e que tinha um péssimo relacionamento com a mãe Melissa (Andrea Roth), que dormia com qualquer um que pudesse ajudá-la a processar a Roxxon. Tandy passou a viver às escondidas numa igreja abandonada, raramente indo para sua verdadeira casa e ficar com sua família.


O primeiro episódio é quem reúne os dois depois de tantos anos.  Conhecendo-se praticamente por memórias perdidas e sonhos, eis que quando Tyrone Johnson e Tandy Bowen se tocam em uma festa após Tandy tentar roubá-lo, seus poderes se manifestam como uma explosão, como dois imãs se repelindo. Desde então, os poderes de teleporte de Tyrone e de criar adagas de luz de Tandy começaram a se manifestar e criar problemas fora de controle. Johnson é levado sem querer até Connors, o policial que matou seu irmão e Bowen esfaqueia por impulso uma das suas vítimas que foi roubada e queria dar o troco a ela agarrando-a a força. Depois disso, cada um encara seus poderes de uma maneira diferente, mesmo que ainda não os controle. Tyrone vê a oportunidade de usá-los para fazer justiça finalmente; Tandy trata como uma maldição por deixá-la numa encrenca ainda maior e quer fugir da cidade o quanto antes. E se não bastasse já os problemas atuais, Tyrone de alguma forma mostra-se ligado a Tandy. Quando ela está numa situação de extremo perigo, é como se conjurasse Tyrone de onde estivesse para aparecer onde ela está. A partir daí, mesmo tendo conflitos entre si, um parece ajudar ao outro de alguma forma. Tandy impede que Tyrone mate O'Connors e se suje. Tyrone evita que Tandy fuja da cidade, como sempre fugiu de tudo.

A história até então vai  tomando os rumos mais pé no chão possível até que em dado momento Pokaski introduz a personagem Evita Fusilier (Noelle Renee Bercy), interesse amoroso de Tyrone na escola. A menina carrega com ela o lado místico que faltava a série. Sua tia Chantelle (Angela Davis) é uma espécie de médium que carrega todo um conhecimento histórico cultural arraigado de Nova Orleans e traz a nossa história o plot do "Pareamento Divino", praticamente uma lenda criada para a série em que transforma o que parecia ser a coincidência do encontro e poderes de Tandy e Tyrone em algo predestinado. Isso nos leva a uma construção sutil, porém não afirmativa, de que o acidente não tenha sido ao acaso e mais do contexto do "Pareamento Divino" ao longo dos séculos é explorado no episódio final da série. 


Nova Orleans, por sinal, é tratada aqui praticamente como uma personagem também. Sabiamente, Pokaski escolheu ela como cenário de sua história e foi o ambiente perfeito não só pelo ar místico que a região sempre teve, mas também por carregar culturalmente bastante as questões raciais e de abuso policial em sua história e isso é levado bem na série. Sua geografia também é explorada bem aqui ao levar os famosos pântanos da Lousiana como cenário. O histórico recente da cidade como algo recém-reerguido e seus moradores como sobreviventes da tragédia que foi o furacão Katrina é bastante lembrado. Até o carnaval de rua dos negros chamado de Mardi Gras serve de pretexto para justificar o fato de Tyrone ter um manto alegórico que o ajudará a focar mais seus poderes. É o jeito bacana de trazer uma roupa tão incomum hoje em dia para a história e ligar aos quadrinhos.

No decorrer dos episódios, Tandy e Tyrone  percebem que para entender o passado dos dois e a origem daqueles poderes, eles devem se associar. E para tal eis que decidem fazer de tudo para pesquisar a fundo o que há por trás da Roxxon e daquele acidente criado por ela anos atrás. Johnson, no entanto, tem outra jornada particular a seguir aí - que é tentar revelar que Connors é de fato um criminoso, não só por matar seu irmão no passado, mas sim por fazer parte de um esquema de drogas que é encarado com vista grossa pela policial local inteira, exceto por uma novata na delegacia vindo direta de Nova York, a detetive Brigid O'Reilly (Emma Lahana). Já Tandy encube-se de limpar o nome de seu pai e entender o que a Roxxon esconde de tão obscuro em suas pesquisas.

No decorrer da história, Tyrone e Tandy começam a aprender outra extensão de seus poderes. Quando o garoto toca em alguém, pode enxergar o maior medo da pessoa. Com o tempo, veremos depois que ele é capaz de incitar também o medo. Já Tandy tem o toque que permite ver as esperanças das pessoas. E assim como Tyrone, mais adiante na história, descobre como roubar essas esperanças das pessoas para si e consumi-las e sentir o prazer momentâneo delas como se fossem suas novas drogas. Para efeitos da história, isso denota pontos importantes dos personagens em suas derrocadas em suas jornadas como heróis que são movidas por grandes decepções - Tyrone ao descobrir que um amigo do seu irmão trabalhava como contrabandista para Connors e Tandy ao saber que seu pai não era tão santo e machucava sua mãe. 


Os primeiros seis episódios da série seguem não muito diferente de qualquer série de drama adolescente e aos olhos do público não acostumado que só venha procurar o seriado pelo selo Marvel ou ser algo de 'heróis', pode parecer uma história esticada ou mesmo efadonha, mas quem está acostumado de fato a ver seriados de cara vê que é uma baita construção de personagens. Mas mesmo que você não se sinta contagiado pelo começo, quem tiver paciência vai ser compensado com coisa muito boa pela frente e já se surpreender com o episódio 7. Nele, o ritmo já fica intenso e o clima toma ares apavorante, Nele, descobrimos uma ideia mais concreta de que a Roxxon esconde na história do acidente misterioso. Com uma baita narrativa fantástica ao colocar Tandy e Tyrone num looping mental na mente do catatônico Ivan Hess (amigo do pai da Tandy que estava na plataforma no dia do acidente e é vivido por Tim Kang), eles confrontam em forma de lembranças os 'Terrores', seres humanos enlouquecidos transformados pela energia de algo que saiu do solo perfurado pela plataforma. E uma vez que conseguem libertar Ivan da prisão da sua mente, Tyrone e Tandy terão agora provas para ao menos livrar a culpa de Nathan Bowen pelo acidente. 

Já o episódio 8 coloca Tyrone como o primeiro da dupla a assumir uma posição de herói de sua própria história. Junto com Brigid O'Reilly e o namorado dela Fuchs (também da policia), Tyrone arma uma situação em que graças a seus poderes e o Manto que criou para o Mardi Gras, é capaz de assombrar O'Connors ao ponto de faze-lo revelar que de fato matou o irmão dele, Billy e assim prendê-lo. O'Reilly só não contava que foi parar numa cidade onde a corrupção impera na policia, diferente do que acontecia em Nova York. Fuchs acabou morto, esquartejado e foi parar aos pedaços numa geladeira (literalmente invertendo assim o tão polêmico tema dos quadrinhos em que as mulheres estão sempre na posição das vítimas de crimes cruéis batizado de 'Girlfriend in the refrigerator'). Já o episódio 9 segue com todo o caso do Connors indo por água a baixo com acusações desfeitas e até mesmo Tyrone sendo acusado da morte de Fuchs. Tandy está também na pior, decepcionada com as novas revelações de seu pai e até mesmo aceitando a saída mais fácil oferecida pela Roxxon de aceitar uma grana ao invés de expor a sujeira da companhia. Esse penultimo episódio, por sinal, é bem peculiar, pois é narrado pelo ator Jaime Zevallos, que faz o Padre Delgado da escola de Tyrone, basicamente contando em paralelo numa sala de aula como é a jornada de um herói.


Por fim, temos aí o episódio final quando nos damos conta que de repente, a dupla de jovens teria que lidar com não só um problema, mas três de uma só vez. Tyrone é um fugitivo da policia e quando pego, junto com O'Reilly, tudo leva a crer que serão apagados sem deixar vestígios. Tandy descobre que a oferta de Peter Scarborough (Wayne Péré), Presidente daquela filial da Roxxon, era mentira e ele tinha apenas intenção também eliminar Tandy, sua mãe e as provas contra ele. E por fim, temos um novo acidente criado (dessa vez propositalmente) pela Roxxon numa das várias válvulas do projeto de estudo da energia do solo local feito por Mina, filha de Ivan Hess (Ally Maki). Isso acaba criando novos 'Terrores' que diferente do que aconteceu na isolada plataforma, rapidamente se espalham e contaminam mais e mais pessoas na cidade de Nova Orleans. O caos toma conta, 'Terrores' atacando a delegacia e dão a chance de Tyrone se livrar, pegar sua capa e se juntar a Tandy.

Todo esse décimo e último episódio dessa temporada é entremeado por uma narrativa paralela da Tia Chantelle, contando vários casos de 'Pareamentos Divinos' do passado e como um deles, que geralmente recebe uma marca no braço é sacrificado para assim salvar a cidade de Nova Orleans. Dessa vez, no entanto, apesar da dupla estar marcada, não há sacrifício de nenhum dos dois. Dentro do núcleo principal que controla todas as válvulas, Tyrone e Tandy decidem dar as mãos e usar o poder concussivo que os extremos dos seus poderes causa para atingir o vazamento e direcionar a energia do solo para longe no alto. Todo os infectados que se tornaram 'terrores' voltam ao normal.



Há algumas mudanças drásticas para alguns, no entanto. O'Reilly é atingida por balas quando confronta Connors e praticamente morre ao cair num dos pântanos, mas a energia que vazava ali na verdade transformou-a em algo mais (que será explorado na segunda temporada) como podemos ver numa cena pós-credito. Mais adiante o próprio Connors tem seu destino merecido ao atacar Tyrone, que revela pela primeira vez outro de seus poderes, o de sugar uma pessoa para dentro de si, na Dimensão Negra (Como faz o Manto dos quadrinhos). Já Tyrone, após resolvido a questão dos 'Terrores', não pode voltar pra casa até sumirem dele as acusações que foram plantadas de que ele matou o policial Fuchs. Então, ele passa a viver como fugitivo na mesma igreja abandonada onde Tandy vivia. Já Tandy fez as pazes com sua mãe, entendendo-a melhor e decidindo morar com ela. No fim, a dupla se reencontra, em posições invertidas e com potencial pra muita coisa ser explorada na segunda temporada.



Mesmo sem uma edição primorosa, efeitos especiais nada elogiáveis ou uma história principal que realmente faça você saltar da cadeira, Manto e Adaga não deixa de ser uma boa surpresa dentre as novidades da TV para a Marvel. É extremamente madura para o que geralmente se vê por aí na linha do público alvo e acaba no decorrer do tempo fazendo essa e aquela correlação com o UCM que te deixa contente. Remediado os tropeços dessa primeira temporada, o seriado tem tudo pra crescer, já que conta com dois atores principais que trabalham muitíssimo bem e cativam o público. Explorando um pouco mais do misticismo da região e talvez até trazendo alguns elementos a mais da linha de terror da Marvel, Manto e Adaga talvez se torne uma das favoritas. Joe Pokaski já provou muito bem do que é capaz.

Coveiro

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