terça-feira, 12 de março de 2019

Arquivo Carol Danvers #2: Tornando-se a Ms. Marvel


Esse é o nosso segundo texto de uma coletânea que estamos lançando no site sobre a Carol Danvers. Sim, a Carol. Afinal, não dá pra defini-la apenas como a Capitã Marvel já que ela teve muitas outras alcunhas antes. A ideia aqui nesses 'arquivos' é fazer um bom apanhado de todas elas. E a primeira e mais marcante de todas elas é certamente a de Ms. Marvel.

A Ms Marvel de muitas maneiras pode ser considerada uma heroína de Legado. Sua história intrinsecamente estava ligada com Mar-Vell e veremos no texto a seguir que a ideia (como era protocolo na época) era relacionar o máximo em aparência e poderes ao herói original. Todavia, em essência, Ms. Marvel era para ser uma personagem independente, pois todas as intenções era que ela fosse a cara do movimento que acontecia na época de Libertação das Mulheres nos EUA nos anos 70. Nesse misto, podemos dizer que era uma personagem complicada de se explicar e talvez a melhor definição foi dada pela própria mais tarde na edição em que ela encontra Mar-Vell escrita por Chris Claremont. Falaremos desse encontro no futuro muito em breve. Aguarde.

UMA HEROÍNA REPRESENTATIVA

Sim, a Marvel já tinha uma galeria grande de heroínas mulheres. Essa não era a questão. O que faltava era realmente uma com a cabeça das Mulheres Modernas daquele momento em que os EUA passava. Em meado dos anos 70 ocorreu o 'Women's Liberation', movimento progressista mais importante para as mulheres nos EUA até hoje e que foi responsável por muitas conquistas na questão da igualdade social e igualdade de direitos, principalmente trabalhistas. Trabalhar com esse tipo de personagem num editorial predominantemente masculino certamente não era tarefa fácil.

Acabou nas mãos de Gerry Conway a função de dar vida a história. Ele era o terceiro na escala de hierarquia da Marvel naquela época, responsável por escrever as histórias do Homem-Aranha, o maior sucesso de vendas da editora. E tinha recebido a missão por consenso de Lee e Thomas, após ambos sondarem algumas pessoas e ideias não tão boas. Conway relata que haviam basicamente duas exigências. Stan Lee queria uma revista com uma heroína trabalhando essa temática e Roy Thomas pediu só uma única coisa, o nome da personagem deveria ser Ms.Marvel. Thomas não queria uma Marvel Girl ou um Mistress ou Miss. Era Ms. Marvel, indicando que ela era uma mulher plenamente independente.



Conway poderia ter começado do zero e ter criado uma personagem totalmente nova. Mas calhou de ele achar que se heroína teria esse nome, então deveria resgatar algo das histórias do Capitão Marvel original. Foi quando ao reler com gosto aquelas histórias iniciais, deparou-se com a identidade civil de sua heroína já pronta ali. Ms. Danvers quando surgiu dez anos antes parecia alguém pronta para ocupar esse papel.

Gerry Conway fez questão de lembrar em seu prefácio da primeira edição lançada em 77 que qualquer mulher que por mérito próprio tivesse conseguido um cargo tão alto como o de Chefe da Segurança do Cabo Canaveral no período pré-libertação, faria jus ao nome de Ms. Marvel. E certamente não estava enganado. Na vida real, demoraria bastante tempo para uma mulher ocupar um cargo equivalente nos EUA.

UMA HERÓINA PROCURANDO IDENTIDADE

Depois de encontrar sua personagem principal, Gerry Conway teve que então pensar no jeito de torná-la uma super. E para tal, usou os últimos momentos importantes dela como coadjuvante quando acabou sendo vítima de um sequestro do vilão Yon-Rogg e usada como isca para atrair Mar-Vell. Como lemos no resumo passado, ela foi alvejada por uma quantidade grande de energia quando a máquina chamada Psicomagnetron explodiu. Mar-Vell a salvou absorvendo parte da concussão, mas só agora descobrimos que a energia residual atravessou os braceletes-nega que o Capitão Marvel portava e se alojou nela.

Carol não tem a mínima noção de quem se tornou até ali. Na verdade, todas as suas memórias acabam bem confusas sobre esse tempo. Vem tendo uma série de desmaios freqüentes que ela não sabe a explicação. E é quando ela tem esses apagões que ela se torna Ms. Marvel. Curiosamente, quando lemos os primeiros quadros dessa história, descobrimos que uma não sabe a existência da outra e isso gera uma série de situações embaraçosas para ambas.



A primeira pessoa a descobrir que as duas são uma só é o terapeuta da Carol Danvers, o Doutor Michael Barnnett. Após uma sessão de hipnose com a sua amiga paciente, é revelado o passado dela para ele e recontado para o leitor toda a história de origem dos poderes de Danvers. Barnnett se torna um dos principais novos coadjuvantes com a missão primeiro de fazer com que Carol e Ms. Marvel soubessem da existência uma da outra sem gerar um grande trauma. Depois, por tentar ajudar a amiga no processo de saber quem de fato ela deveria ser.

Inicialmente, essa ideia de duas mulheres num só corpo era nada mais, nada menos do que uma manutenção do mesmo perfil de estrutura do herói Capitão Marvel. Após algumas mudanças que comentamos brevemente no texto anterior, Mar-Vell ganhou poderes incomensuráveis, mas perdeu sua capacidade de permanecer sozinho em um corpo na dimensão positiva. Para tal, ele foi obrigado a dividir seu corpo com o já famoso entre os leitores, o adolescente Rick Jones. Ms. Marvel e Carol Danvers seguia uma linha um tanto diferente, era o mesmo corpo só que mentes diferentes. Ficou no ar aquela questão de que se de fato eram duas pessoas distintas.



A outra intenção dessa ideia da perda da identidade veio do Conway de realizar um paralelo entre a descoberta de "quem Carol Danvers era" e a jornada das mulheres da época em busca de  "conscientização" e "auto-libertação". A ideia era que os quadrinhos evoluíssem a história para em deteminado ponto Ms. Marvel fosse muito além da sombra do nome do Mar-Vell e no final existisse uma heroína distinta.

ALGUÉM IGUAL E DIFERENTE AO MAR-VELL

Entender quem de fato era a Ms. Marvel nesse começo é algo difícil realmente, principalmente com esse lance de personalidade dupla como plot principal. Quando transformada na heroína, apesar de sutil, o corpo da personagem parecia mudar. Barrett chegou a descrever que ela viraria uma "grande mulher", sutilmente inferindo que era muito mais muscular que a Danvers em sua identidade civil. Notoriamente, seu corte de cabelo mudava ao assumir a outra personalidade, parecia volumoso e escovado sempre. E além disso, tinha seu uniforme (que a principio era de natureza Kree). Mais do que levar as cores do novo uniforme (que se tornou clássico) do Capitão Marvel, ele originalmente portava um tipo de circuito que a ajudava a voar.



Na questão de poderes, Ms. Marvel tinha o kit padrão clássico de força e durabilidade como base, mas o que mais se destacava e ajudava na direção de suas histórias era o seu "Sétimo Sentido" (não me perguntem qual seria o sexto). Quase sempre que era acometida pelos seus apagões quando transitava entre as personalidade de Danvers e Ms Marvel, a heroína tinha uma série de flashes de acontecimentos futuros próximos. Antecipando essa visão, Carol sempre tentava estar um passo a frente das grandes ameaças e salvar as pessoas próximas. Era algo interessante, mas curiosamente esse poder que tanto a marcou no começo foi com o tempo entrando em menos uso até ser praticamente esquecido por roteiristas.



Outro problema era que no começo dessas histórias, Ms. Marvel chegou a revelar uma série de lembranças todas remetidas a um suposto treinamento na Academia de cadetes Krees. A personagem também constantemente quando transformada usava termos dos aliens azuis como "Pama" ou "Hala", dentre outros. Se elas de fato sempre ocuparam o mesmo corpo, como e quem levou Carol para outro planeta e foi aceita pelos Krees? E se fosse falsas memórias, como Danvers a obteve? Seriam memórias do Mar-Vell que acabaram assimiladas por ela assim como foi os poderes?


UM NÚCLEO DE COADJUVANTES FAMILIAR

Quando o nome de Gerry Conway veio a tona no editorial para capitanear essas histórias da Ms. Marvel, Lee e Thomas sabiam exatamente o que estava fazendo. Conway era um garoto muito jovem na época, mente aberta e de uma criatividade ímpar. Não é a toa que assumiu o Homem-Aranha, logo após a saída de Stan dos roteiros do título. E Gerry foi muito certeiro em trabalhar com o núcleo coadjuvante do Teioso. Em especial, com Gwen Stacy e Mary Jane Watson. Foram suas histórias que engrandeceram essas duas mulheres tornando-as duas coadjuvantes tão ou mais queridas que os heróis. Ele certamente poderia reproduzir isso com Carol Danvers.

Só que Gerry Conway foi um pouco mais além. Talvez até para puxar os leitores do Homem-Aranha para esse novo título, o roteirista levou Carol Danvers a desistir do seu cargo do exército e seguir como escritora. O rápido sucesso fez com que ela caísse nos olhos de J. J. Jamenson que estava querendo justamente lançar uma revista para mulheres chamada Woman. E os papos entre Danvers e Jamenson é um dos pontos altos do gibi, gerando momentos divertidos que vão desde negociação de salário até Jamenson tentando ditar para Carol o que ele acha que deveria ir pra revista. E se pudesse: que ela denunciasse essa nova heróina Ms. Marvel como potencial ameaça.



Conway tentou não só colocar personagens e rostos conhecidos do Clarim para compor o elenco de coadjuvantes como também quis até dar uma forçadinha ao encaminhar um começo de amizade entre Mary Jane e Carol Danvers, algo que não teve muita química e não durou muito. Até mesmo o primeiro vilão a aparecer foi chupinhado das histórias do Espetacular Homem-Aranha. A Ms Marvel teve que impedir que o Escorpião matasse o Jamenson e salvou o irritado editor do jornal (que achou uma humilhação ser resgatado por uma super, ainda mais mulher). Ao lado do Escorpião, surgia o primeiro vilão original criado para fazer frente a heroína, o Doutor Kerwin Korman, o Destruidor.



Na terceira história do título, no entanto, Cornway também fez questão de lembrar do passado da heroína em Cabo Canaveral,  e inclusive lhe deu dois novos nomes para serem seus únicos amigos que sobraram de lá, os astronautas Salie Petrie e David Adamson. Petrie seria a primeira astronauta mulher numa missão no espaço e era esse o tipo de matéria que Danvers queria para sua revista. Nada de fofocas e dicas de bem estar, ela queria fazer da Woman de fato uma revista sobre a mulher moderna e enaltecer todas aquelas que eram exemplo pros dias atuais (no caso, dos anos 70, claro). Essa última história contou ainda com outra safra de vilões emprestados - A IMA e um antigo inimigo do Surfista Prateado, o robô Doomsday Man. São histórias bem divertidas. Essas três primeiras histórias foram desenhadas por John Buscema, o que denota o quão Stan e Roy queriam apostar que  o título desse muito certo.

UM DESABAFO DO ESCRITOR DA SÉRIE

Quando voltou a escrever um novo prefácio sobre suas histórias da Ms Marvel para uma coletânea de um Biblioteca Histórica, Gerry Conway parecia um pouco constrangido pelo trabalho que entregou. Ele fez o novo texto em 2014 (logo quando Carol assumiu o manto de Capitã Marvel na nova era de heróis que vinha aí pra editora), quase 47 anos depois. Em suas palavras, ele não tinha certeza se conseguiu entregar algo justo para o que era a proposta da heroína. Chegou até a lamentar o mal uso do prefácio original de que não haviam "escritoras qualificadas" na época trabalhando pra Marvel.

E devemos interpretar isso de forma literal. Não haviam de fato. A Marvel chegou até a criar uma iniciativa de quadrinhos escritos por mulheres no começo dos anos 70, mas foi um fiasco de vendas e gerou muita dor de cabeça nos bastidores. Falamos disso num artigo aqui. Gerry Conway estava no editorial nessa época e conhecia bem o que aconteceu. Ainda assim ele ressaltou naquele texto introdutório em Ms Marvel #1 que "Não existem mulheres que escreviam super-heróis. Deveria existir. Não nego isso. Mas não existem" ressaltou.

Ainda assim, Conway decidiu assumir o título a pedido de Roy Thomas pelo desafio. Ele acreditava que mesmo sendo um homem, ele disse que "se propriamente motivado e bem informado de todos os desafios do tema, tentaria escrever sobre uma mulher aos olhos de uma mulher". Ele em seu texto original confessa que até então achava que nenhum homem escreveu dignamente uma mulher de forma convincente, mas acreditava que poderia fazer. Caberia ao público e a História dizer se ele foi bem sucedido.

Então, quase meio século depois, Conway ciente do passar dos tempos, sabe que até o entendimento do que é feminismo hoje mudou. Em retrospectiva, ele não tinha certeza mais se repercutiu "o que as mulheres queriam" em suas histórias. As histórias por mais que fossem até aceitas na época atingiram muito mais um grupo de meninos do que de meninas, ele acreditava.  Mas relendo suas histórias, ele encontrou um quadro em especial que achou significativo, onde lá uma menina dizia querer ser tão forte quanto a Ms. Marvel quando crescesse.



Mas foi poucos dias antes de terminar o editorial da Biblioteca Histórica que ele disse que estava numa convenção e surgiu na sua frente a talentosa Kelly Sue DeConnick, escritora que revolucionou Carol Danvers mais recentemente. Ela foi até ele, pediu um autógrafo e uma foto com ele. Emocionado, Conway disse que talvez lá no fundo ele tenha até tenha feito algo do jeito certo. E fez. Ele deu o primeiro passo.

Apesar do texto longo acima que leva a muitas explicações e reflexões para o começo das histórias de Carol Danvers como Ms. Marvel, Gerry Conway escreveu apenas 3 histórias. Na última ele já passava o bastão para seu substituto, responsável também por vários marcos da personagem - Chris Claremont.  Seria o sujeito que salvou os X-Men responsável por nos entregar a Melhor Ms. Marvel possível?

Continua no Arquivo Carol Danvers #3...

Coveiro

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