quarta-feira, 24 de abril de 2019

Grandes Histórias Marvel no Brasil: A Estranha Relação da Marvel com o Shazam no Brasil

A Marvel vem sendo publicada no Brasil à quase oitenta anos. Sua jornada em nosso país está diluída em 40 editoras, desde sua chegada nos anos 1940 na fase Timely até o presente pela Panini.
Para resgatamos muitas dessas histórias, estaremos iniciando a sessão "Grandes Histórias Marvel no Brasil", que será escrita por um colaborador convidado Alexandre Morgado, apresentando muitas curiosidades e causos interessantes da casa das ideias no Brasil.

Alexandre Morgado é cartorário do 15° Tabelionato de São Paulo. É também autor do livro "Marvel Comics - A Trajetória da casa das ideias do Brasil", livro que narra a história da Marvel em nosso país, publicado em 2017 pela Editora Laços. O autor possui um acerco gigante de HQs, principalmente com material da Marvel Comics. E seu primeiro texto nessa nova coluna será sobre as confusões criadas entre os diferentes 'Capitães Marvel' nos primórdios das publicações no Brasil.



“A ESTRANHA RELAÇÃO DA MARVEL COM O SHAZAM NO BRASIL”

O PRIMEIRO CAPITÃO MARVEL POSSUI DIVERSOS “CAUSOS” COM O UNIVERSO MARVEL EM NOSSO PAÍS.

Não tem jeito: para aqueles que acompanham os quadrinhos há mais de 50 anos, é praticamente impossível chamar o primeiro Capitão Marvel pelo seu nome atual, Shazam. Para aqueles que não sabem da confusão entre os nomes vale uma explicação:                 

O primeiro personagem a ostentar o nome de Capitão Marvel foi o jovem Billy Batson, criado por Bill Parker e Charles Clarence Beck em 1940 na revista Whiz Comics, pela editora americana Fawcett Comics.  Quando o jovem Billy gritava a palavra “Shazam”, se transformava no mortal mais poderoso do planeta.  O sucesso entre os leitores não demoraria a acontecer. O Capitão Marvel foi um dos raros personagens que rivalizava diretamente com o Superman em plena era de ouro dos quadrinhos. E tal rivalidade traria alguns problemas tanto para a Fawcett quanto para a DC Comics (na época chamada da National Publications).  Superman foi o início do mito dos Super-Heróis nos quadrinhos, e muito dos personagens que viriam após o Homem de Aço, seria galgado em cima da sua mitologia. A National, ao contrário dos leitores, não ficou nada feliz com as histórias do Capitão Marvel, e acabaria entrando em uma grande batalha jurídica com a Fawcett. A acusação era direta: segundo a National, o Capitão Marvel era um plágio do Superman.       

No ano seguinte à criação do Capitão Marvel, após começar a perder nas vendas, fez com que a National entrasse com um processo contra a Fawcett em uma das primeiras batalhas entre editoras de quadrinhos que duraria por 12 anos, até se encerrar em definitivo em 1953.

Os argumentos da National eram em cima dos poderes similares entre os dois: Super-força, resistência e voo.  Além da cor do cabelo e também pela “calvície” entre seus arquiinimigos, Lex Luthor e Dr. Silvana.  A Fawcett contra-atacou, com o argumento que ambos os personagens eram baseados nas lendas de personagens das civilizações antigas da nossa História como Hércules, Salomão entre outros.                                     

O início aos anos 50, período em que os quadrinhos de super-heróis entrariam em declínio, acabaria ajudando a National de certa forma em sua disputa.  A Fawcett encerraria suas atividades, o Capitão Marvel não seria mais publicado e a National acabaria levando uma quantia alta referente ao processo (cerca de U$400.00,00). E assim, a Fawcett encerraria sua história nos quadrinhos americanos. Durante as próximas duas décadas o Capitão Marvel ficaria inerte. Foi ai que em 1972 a National, que já tinha mudado a alcunha para DC Comics, acabaria adquirindo os direitos do Capitão Marvel, incluindo o mortal mais poderoso em seu universo juntamente com todos os seus personagens. Mas, um problema ainda tinha que ser resolvido: a DC não podia chamá-lo de Capitão Marvel. Tudo porque, na ausência do personagem, Stan Lee, Jack Kirby e companhia haviam criado o Universo Marvel. E em 1967 um novo personagem com o nome de ...Capitão Marvel.                                          
Nos primórdios, o novo Capitão Marvel era chamado de Mar-Vell, guerreiro da raça Kree, que chega a Terra para preparar uma invasão ao nosso planeta; porém Mar-Vell acaba se “encantando” com os humanos, e se volta contra sua própria raça, pondo um fim na invasão e tornando-se um dos protetores da Terra.


Detalhe da imagem: Apesar de estarem juntos, os personagens não se encontravam nas mesmas histórias.

No Brasil, o Capitão Marvel da Fawcett foi publicado pelo jornal “O Globo”. Sua estreia ocorreu na revista “Gibi Mensal” nº 34 em outubro de 1943, ao lado dos personagens da Marvel (que na época era chamada de Timely Comics).  No início da criação do mercado nacional de quadrinhos no Brasil, as editoras publicavam diversos personagens das mais distintas editoras americanas nas mesmas revistas. Era comum essa mistura dos mais diversos personagens na mesma publicação. Naquela época, as intermediações eram feitas por agências, (no caso a APLA e a Record) que compravam os direitos diretamente das editoras americanas e revendiam para as brasileiras. Assim, cada uma publicava o que queriam do jeito que bem entendesse e da forma que acreditava ser a mais viável.

Durante os anos de ausência após o fim da Fawcett, o Capitão Marvel ainda era publicado no Brasil pelo O Globo e pela sua substituta, a RGE. Hoje parece ser inimaginável ver personagens da DC e da Marvel nas mesmas revistas, mas isso era bem comum naqueles anos de firmação no mercado nacional.  Entre os anos 40 e 50, algumas capas da revista Gibi Mensal ilustravam o Tocha Humana ao lado do Superman e interagindo com o Capitão Marvel.  Após sua estreia em Gibi Mensal, o Capitão Marvel ganharia uma revista própria em 1949, batizada simplesmente de “Shazam”, profetizando como o personagem viria a ser chamado no futuro.  Algumas edições da nova revista, por mais bizarro que fosse, acabavam não vindo com nenhuma história do Capitão Marvel. Então, o leitor ia até a banca mais próxima para comprar a revista Shazam, e nela tinha histórias do Namor, Tocha Humana e Capitão América. Todos personagens da Timely. Em 1964, por ausência de novas histórias, decorrente ao processo vencido pela DC Comics, a RGE acabaria inventando algumas por conta própria.


Detalhe da imagem: Ao comprar uma revista do Shazam, você encontrava os personagens da Timely.


Diversas publicações apresentavam os personagens da Timely, da DC e da Fawcett juntos nas capas das revistas, porém nas histórias isso não acontecia. Mas toda regra tem a sua exceção. Uma dessas exceções aconteceu com o Tocha Humana, no Almanaque do Globo Juvenil, de 1964. O personagem se encontrou em uma história não oficial com o Capitão Marvel (Shazam). Essa história foi feita exclusivamente no Brasil, e não faz parte da cronologia dos personagens. Nessa época, o Tocha já tinha sido incorporado ao Universo Marvel tradicional, enquanto o Capitão Marvel estava ausente das bancas. E assim, o jeitinho brasileiro dava as caras em uma revista em quadrinhos.  Com isso, algumas histórias foram encomendadas aos artistas brasileiros.         

                                                                                                                                                                   A história chamada de “A Volta de um Grande Herói” apresenta o Tocha Humana e o Capitão Marvel se juntando em uma história bobinha e simplória apenas para matar a saudade de alguns saudosistas. Essa história pirata foi feita no Brasil pelo desconhecido desenhista brasileiro Rodriguez Zelis. Na história, ambos se juntam para investigar o sumiço de um amigo de Billy Batson, enquanto enfrentam um personagem chamado Cobra.


                           Detalhe da imagem. História produzida inteiramente no Brasil.

O Capitão Marvel, assim como nos Estados Unidos, fez muito sucesso no Brasil. Alguns personagens eram disputados a “tapas” pelos editores brasileiros. Um desses editores, chamado Miguel Penteado, fundador da GEP (Grupo de Editores Penteado) com grande experiência no ramo, tendo passado por diversas editoras no Brasil, era um dos mais atuantes no mercado nacional. Após fundar a GEP em meados dos anos 1960, ficaria animado ao descobrir que alguns personagens estavam disponíveis para serem publicados no Brasil. Com o início da era Marvel pela Ebal, em 1967, com novos personagens como Hulk, Thor, Homem de Ferro, Home-Aranha, além do retorno do Capitão América e Namor, Miguel Penteado descobriria que a EBAL não tinha adquirido alguns desses novos heróis. Em contato com a APLA, Penteado se encantou pelos estranhos heróis de um grupo de mutantes com o nome de “X-Men” e de um viajante solitário chamado “Surfista Prateado”. Mas o que deixaria seu coração palpitando em descompasso seria com o personagem Capitão Marvel. Miguel Penteado não podia acreditar que estaria em posse de suas histórias. Assim, Miguel não pensaria duas vezes, e acabaria levando todos esses personagens para a sua editora.  Chegando aos escritórios da GEP, Miguel começaria a editar esses novos personagens, principalmente seu antigo herói de infância, o Capitão Marvel. Porém para sua surpresa, na hora de traduzir e editar, Penteado acharia algo estranho. Esse Capitão Marvel não era Billy Batson, e sim Mar-Vell, o herói Kree.



Detalhe da imagem: A estreia do Capitão Marvel da Marvel no Brasil pela GEP.

 O banho de água fria foi tão forte quanto o raio que atinge o jovem Batson. Com os direitos desse Capitão Marvel, Miguel não podia deixar de publicá-lo. E assim o herói Kree chegava ao Brasil em “Edições Gep nº 11” publicado em 1969. A disputa de direitos de publicação com alguns personagens entre as editoras brasileiras, faria com que Miguel Penteado tivesse uma ideia: poderia fazer suas próprias histórias com alguns personagens que não estavam em suas mãos. E assim que publicou as histórias dos X-Men, Miguel Penteado encomendou para que fossem feitas algumas histórias produzidas no Brasil. Com isso, o artista Gedeone Malagola e o desenhista Walter Gomes fariam algumas histórias piratas com os mutantes.  Em uma dessas histórias na edição nº 8 foi apresentado os X-Men se encontrando com Thor.

Muitos leitores gostaram, porém Adolfo Aizen, dono da Ebal que publicava as histórias do Deus do Trovão, não gostou nem um pouco. Aizen reclamou em alto e bom som nos ouvidos de Miguel Penteado, pois este usou um dos seus personagens sem autorização. E como a Ebal tinha um acordo moral para com as histórias do poderoso Thor, Miguel prometera não usar nenhum outro que estivesse sendo publicado pela Ebal. Em 1970, a EBAL publicava uma revista chamada “A Maior” com histórias do Capitão América, Thor e Homem de Ferro. Uma das curiosidades da revista A Maior aconteceu na edição nº 03, em agosto de 1970.       

 A história apresentada como sendo do Homem de Ferro nessa edição foi publicada na revista “Captain Marvel nº 14”, com a participação do Capitão Marvel, personagem que vinha sendo publicado pela Editora GEP. Nessa edição, o personagem foi chamado de “Capitão Maravilha”.          A mudança de Capitão Marvel para Capitão Maravilha, além das cores originais do Personagem na capa da revista aconteceu bem provavelmente para não ter outro conflito de interesse com Miguel Penteado.

Detalhe da imagem: Homem de Ferro versus Capitão Maravilha?

Agora o caso mais emblemático aconteceu no dia 1º de junho de 1988. Nesse ano a Editora Abril, que estava em posse da Marvel e da DC, acabara de inaugurar sua coleção de luxo chamada “Graphic Novel”.  Em um acabamento especial com histórias fechadas, a coleção apresentava o que estava sendo publicado de melhor de ambas editoras.  Na edição nº 03 chegava às bancas a clássica história “A Morte do Capitão Marvel”. 

 A história escrita e desenhada por Jim Starlin apresentava o último suspiro do herói Kree, vitimado pelo câncer.  Nessa data citada, o jornal carioca “Jornal do Brasil,” trazia uma matéria sobre a Morte do Capitão Marvel. O curioso é que o jornalista que assina a matéria chamado Sérgio Sá Leitão, hoje Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, acaba misturando o Capitão Marvel da Fawcett, que já era chamado de Shazam, com o Capitão Marvel da Marvel. Na primeira página do jornal vinha a seguinte nota assinada pelo jornalista:

“A vida do Capitão Marvel, herói de quadrinhos criado nos anos 40, chegou ao fim, fulminada por um câncer incurável. A história – com uma autobiografia – está na revista A Morte do Capitão Marvel, lançada pela Editora Abril”


Detalhe da imagem: chamada de capa do Jornal do Brasil.


Ao lado do texto de introdução está a imagem do Shazam, o Billy Batson e não a do Herói Kree, que era de fato o protagonista da história. Dentro do caderno cultural, o autor do texto acaba difundindo a história da Morte com ambos os Capitães Marvel como sendo o mesmo personagem. Na matéria o jornalista diz:

“Pra quem não se lembra, o Capitão Marvel era aquele rubro Zorro que enfrentava o terrível Dr. Silvana, gritava Shazam para adquirir os super-poderes e declarava no final das aventuras que não importa onde o mal apareça, o Capitão Marvel lutara até a vitória. Na verdade, ele já passou por muitas modificações e fases diferentes, desde que foi criado em 1939 por C.C. Beck para a editora Fawcett, e esta versão que agora aparece nas bancas brasileiras pouco ou nada tem haver com as mais antigas. Sua vida repleta de apogeus e decadências começou na revista Whiz. Nessa época ele era a identidade heróica do jovem órfão Billy Batson, que quando evocava o mago egípcio Shazam adquiria uma força sobre – humana. A história era muito simples, tanto no desenho quanto no texto, e voltava-se basicamente para o público infantil, que se identificava com o órfão defensor do bem. Alguns anos depois ele foi recriado na família Marvel, mas não alcançou o mesmo sucesso de antes, o que só foi ocorrer quando em 67, Stan Lee, na revista Marvel Super- Heroes publicada pela Marvel Comics reinventou completamente o mais poderoso mortal do mundo. É esse terceiro Marvel que Jim Starlin enviou dessa para melhor, sepultando-o para sempre nos museus dos Comics”.

Sérgio Sá Leitão finaliza contando um pouco sobre a origem Kree, em uma matéria recheado de amálgama entre os dois distintos personagens. 

Como podemos ver, a confusão entre Capitão Marvel, Shazam, Capitão Maravilha, Billy Batson e Mar-Vell é mais complexa que imaginamos. A estranha trajetória do nome, já enganou jornalista renomado, editor experiente e muitos leitores que não entediam o motivo de às vezes o Capitão Marvel estar de máscara de cabelo loiro, e às vezes sem máscara e de cabelo escuro.  Principalmente em uma época sem internet, as buscas pela informação eram mais difíceis e complicadas. Afinal, uma vez Capitão Marvel, sempre Capitão Marvel não é?

Acreditem: você não tem culpa das mazelas e das loucuras que o mercado de quadrinhos brasileiro faz desde os anos 40, quando Adolfo Aizen e Roberto Marinho deram o pontapé inicial desse complexo mundo dos quadrinhos no Brasil.

Alexandre Morgado

N.E.: As imagens dessa matéria foram retiradas do site Guia dos Quadrinhos, o único lugar na internet onde essas raridades poderiam ser encontradas.

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