sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Editorial 616: Sobre a censura ao beijo do Hulkling e Wiccano


Esse é um daquelas textos que particularmente a gente já sofre ao abrir o editor de postagens do site pra começar a escrever. Afinal,  em pleno final desta segunda década do novo milênio, pensar numa censura em cima de uma história em quadrinhos, seria (ou deveria ser) considerado um absurdo imenso por todos. Considere então que toda a polêmica levantada foi em torno de um gibi que já saiu nas bancas faz sete anos. E cuja a reediçao em formato de encadernado está por aí nas livrarias faz mais de 3 anos. E ainda assim a simples existência desse gibi, de uma hora pra outra, virou assunto nas mídias depois de um político tentar proclamar uma caça as bruxas em torno dessa história em meio ao maior evento literário realizado na mais famosa e internacional cidade brasileira.

Ao ver a postagem original do prefeito envolvido acendendo a tocha já na quinta-feira a noite, meu primeiro impulso foi fechar o twitter e torcer que seria só uma faísca e que na manhã seguinte tal assunto indigesto teria sido plenamente ignorado. Ledo engano. No descampado seco que virou o Brasil (gostaria de estar só falando figurativamente aqui), era óbvio que esse assunto não seria apenas um fogo de palha. Ainda assim, meu primeiro movimento não foi de criar um artigo pra cá e dar reforço ao sensacionalismo já gigante que essa história tomava. Estava já de mau humor e com coisas a fazer no dia. Fora que não tardaria pra ter um monte de sites revirando o assunto das mais diferentes formas possíveis, nem todos de uma maneira devida ou que abarcasse bem o problema ao meu ver.

Troquei algumas ideias com alguns dos meus colaboradores do site sobre a situação e no meio disso, refleti que o mais interessante a se fazer seria jogar a informação pra fora e adiantar aos gringos o princípio de um cenário absurdo que o Brasil está buscando flertar perigosamente. Escolhi três sites americanos de que gosto e passei um resumo de tudo com links no meu melhor inglês trôpego. Fui prontamente respondido por dois deles, que agradeceram e como esperava fizeram matérias muito dignas e honestas (O terceiro postou sobre o assunto a pouco). Com os textos escritos por sites respeitaveis de lá, passei para um promoter da editora que conheci e artistas que mantenho contato. Acho importante a Matriz saber o que esta acontecendo. E até gostaria de ver algum pronunciamento, mesmo que na conta pessoal, do Cebulski. Brasil, mesmo com crise do mercado, ainda é um dos maiores públicos consumidores deles.

Agora, voltando ao nosso lado de cá, se você esteve acompanhando as redes sociais e outros sites já deve estar ciente do que aconteceu. Logo pela manhã, os exemplares da Salvat de Vingadores: Cruzadas das Crianças teve venda esgotada segundo as lojas que vendiam o produto no local e a própria Bienal se posicionou em nota oficial que não permitiria recolhimento do material como exigido pelo prefeito. Ainda assim, a tarde, para meu espanto surge imagens de fiscais enviados pela prefeitura para vasculhar o evento em busca de materiais considerados 'impróprios'. Não era mais que uma dúzia deles, o que tornaria impossível 'checar' revista a revista, página a página, numa feira do tamanho da Bienal.



Segundo relatos da imprensa, os fiscais saíram de lá sem levar nada. Obviamente, duvido até que soubesse o que estavam procurando por justamente desconhecer o material da feira. O chefe do grupo teria dito que 'só encontrou muitos livros'. Patético. Mais pro final do dia, a Justiça soltou duas liminares que proibiria apreensões de materiais na feira e garantia funcionamento integral do evento.  Notoriamente, a ação toda orquestrada foi só pra 'freguês' ver. O dedo até coça para escrever mais, mas a consciência me lembra que essa não é a intenção do texto.

O fato mais preocupante aqui vai além das ações do próprio prefeito em si. Preocupa muito mais a propagação torta que o assunto reverbera fora do meio dos quadrinhos (e as vezes até dentro dele) do que o ato por si. A história em questão, que tem o romance dos dois personagens apenas como caracterização e pano de fundo, é espalhada como um 'gibi de temática gay' por certos veículos. Não é. A cena que foi tão polemizada trata-se apenas de um beijo e palavras trocadas por personagens, ambos vestido, em pé, e foi repetida por aí por quem não viu como pornografia. Clamaram pelo Estatuto da Criança e Adolescente (que quando convém é sempre criticado por essas mesmas pessoas), mas não há em dita cena nada que se classificaria de fato como imprópria (um beijo sendo só um beijo não se enquandra em nenhuma parte no texto do ECA como impróprio, sem restrições a nenhum gênero). E por fim, o que deveria ser bem evidente a todos, em nenhum momento as histórias em quadrinhos atuais da Marvel são voltadas pra o público infantojuvenil (há uma linha diferente voltada pra isso na editora). Por muitos outros motivos, que vão de imagens com bebidas alcoolicas, armas a violência, muitos gibis da Marvel contrariam o art.79. Todos esses seriam motivos muito mais aplicáveis do que a cena condenada pelo prefeito. Em sumo, caem na retórica de que se é quadrinhos é só pra os pequenos, quando no caso não o são.

Gostaria de parar por aí, deixar a ignorância sobre o assunto para as pessoas que nunca pegaram no gibi (ou mesmo em qualquer gibi) nas mãos. Mas seria hipocrisia restrigir a eles só quando qualquer olhada nos comentários de artigos nas redes sociais do nosso site - incluindo aí de filme, quadrinho ou série -  eu não encontrasse falas que espelhassem uma retórica similar. É triste. Mas nunca foi pretensão do 616 fazer com que as pessoas tivessem mais empatia, mesmo que uma história onde heróis são os protagonistas das narrativas, a empatia seja geralmente um valor humano presente. Deixo de lado. Só que a única coisa que não dá pra deixar passar é essa fala rasa de que 'os tempos de Stan Lee eram outros'. É fala de quem nunca soube a fundo a história dele, nunca se deu ao trabalho de ler seus recadinhos ao público nas famosas colunas 'soapbox' das revistas, nunca refletiu verdadeiramente sobre as mensagens de muitas de suas histórias seja como autor ou editor delas. A Marvel nunca deixou de ser o que ela é hoje. Ela criou o primeiro super-herói negro numa década onde muitos leitores se incomodariam. Ela contrariou o 'comics code' pra falar sobre vício em drogas quando o assunto era um baita tabu. Colocou personagens morrendo com AIDS em suas páginas quando o tema era ainda todo envolvido em preconceito. Essa sempre foi a Marvel desde sua existência, com benção de São Stan Lee. Se você se incomoda agora, você está apenas ocupando o papel igual aos dos 'leitores' resistentes dessas outras épocas. E a Marvel está aqui fazendo o papel dela de sempre.

Voltando então ao que disse no começo, reforço a lamentação de ser obrigado a escrever sobre assunto tão indigesto. Para alguém que já viveu as últimas décadas e viu algo como os jogos de RPG - só pra citar como exemplo - sendo criminalizados, a última coisa que gostaria de que se repetisse por aí é esse tipo de 'caça as bruxas da sociedade' vindo a tona. Gostaria de acreditar que esse tipo de coisa ficou naquele tempo. Mas não. Estamos beirando a tempos mais imbecis de novo.

Coveiro

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