terça-feira, 8 de outubro de 2019

Grandes Histórias da Marvel no Brasil: Guerras Secretas, a Grande Confusão



A PRIMEIRA GRANDE SAGA DA MARVEL FICARIA LEMBRADA PELA GRANDES ALTERAÇÕES NO BRASIL.

Nos Estados Unidos, a Marvel fez no início dos anos 80 uma grande parceria com a empresa de brinquedos Mattel. Depois de fazer uma pesquisa entre o público, constatou-se que o nome Secret Wars (Guerras Secretas) deixava os jovens alucinados. A Mattel, então, desenvolveria uma nova linha de brinquedos, baseando-se nos personagens Marvel. A linha, chamada de “Marvel Super Heroes Secret Wars”, fazia parte de uma campanha publicitária, envolvendo os lançamentos dos brinquedos dessa série, em escala global.             
                                                                                                                                                                            Junto com a linha de brinquedos, a Marvel publicaria os quadrinhos da nova saga em formato de minissérie, com o nome de “Guerras Secretas”.   A saga, escrita por Jim Shooter e desenhada por Mike Zeck e Bob Layton, mostra todos os principais personagens, heróis e vilões, sendo levados para um planeta desconhecido, com o nome de Mundo Bélico, por um ser chamado “Beyonder”. No mundo Bélico, heróis e vilões entram em um combate, promovido pelo próprio Beyonder. Aos vencedores, como prêmio, todos teriam os seus desejos realizados.Apesar da premissa simples, a saga foi um sucesso nos Estados Unidos. E traria grandes transformações, mexendo nas estruturas da Marvel.  A Editora Abril publicou a saga em 1986, também no formato de minissérie, em 12 edições. Mas o grande problema seria o período em relação à história. A editora publicava os gibis com alguns anos de atraso em relação ao que estava sendo publicado nos EUA.



 No Brasil, sempre foi, e é assim até hoje. O que está sendo publicado nos Estados Unidos chega ao Brasil dois ou três anos depois. Hoje, a média fica em um ano do que está sendo publicado. Porém, por exigência da própria Marvel, a Abril foi obrigada na época a publicar a saga antes do tempo. Com essa condição, o editorial da Abril teve um tremendo “abacaxi para descascar”. O motivo principal era o fato do licenciamento dos brinquedos estar concedido à empresa Gulliver, uma das maiores no ramo de brinquedos do Brasil - que já planejava lançar a nova linha o quanto antes (no lançamento dos brinquedos, a Gulliver publicou uma revista promocional, a “Marvel Super-Heróis: Secret Wars - Guerras Secretas). E para isso, precisaria que a história fosse publicada antes do tempo. O editor da época, Hélcio de Carvalho, recorda esse fato:   

“Guerras Secretas não se encaixava em nossa cronologia, mas era uma exigência da Marvel, pois estava atrelada a uma linha de brinquedos nos EUA. Tivemos um trabalho danado para que a série não ficasse deslocada demais em relação ao que estávamos publicando”, revela. O problema em publicar a saga antes da hora implicaria em todo o trabalho feito para unificar a cronologia Marvel. 

      
Alguns fatos apresentados em Guerras Secretas ainda eram novidades no Brasil. A mutante Vampira, antes sendo uma criminosa, acaba se regenerando, até se tornar a mais nova integrante dos X-Men. A Capitã Marvel (Monica Rambeau) seria a mais nova personagem a integrar o grupo dos Vingadores. Tony Stark, o Homem de Ferro, tendo que lidar com uma crise de vício em álcool, seria substituído por seu amigo James Rhodes. Ororo Munroe, a Tempestade dos X-Men, estava com um novo visual. A personagem tinha abandonado seu antigo uniforme, e adotado um novo penteado. O Professor X, líder e mentor dos X-Men, tinha abandonado a cadeira de rodas. Depois de ser infectado por uma raça alienígena conhecida por Ninhada, um novo corpo clonado seria criado pelo Império Shiar. Com o novo corpo, sua mente seria transferida, e assim Charles Xavier voltaria a andar novamente.   
                
Nas histórias dos X-Men contra a Ninhada, Kitty Pryde adotaria um dragão chamado Lockheed, tornando-se o seu dragão de estimação. Durante as Guerras Secretas, Sue Richards, a Mulher Invisível, não participaria da história. Sue ficaria na Terra, pois naquele momento estava grávida de seu segundo filho. Todos esses fatos apresentados ainda não tinham sido publicados no Brasil. Com a exigência da Marvel em publicar a saga antes do tempo, a Abril tomaria uma atitude que, até hoje, não é perdoada pelos leitores. Como a editora já tinha como hábito editar suas histórias para que a sincronia entre os personagens estivesse em harmonia, o editorial achou como solução simplesmente alterar todos esses fatos.                 

                                                                                                        

 Vampira, Capitã Marvel e o dragão Lockheed foram apagados das histórias. Era como se eles não tivessem participado da saga. Como não tinham sido publicados ainda por aqui, foram simplesmente limados. O visual da Tempestade não foi mudado, e como ainda era uma novidade, muitos leitores não entenderam o porquê da personagem estar usando um moicano. O Homem de Ferro que participou da saga não era Tony Stark, e sim o seu amigo James Rhodes, que era negro, embora a Abril se referisse a ele como Stark.
                                         
 Em determinada parte da aventura, Reed Richards, o Senhor Fantástico, faz um pequeno ajuste na armadura do braço esquerdo do Homem de Ferro. Nesse momento, é possível ver o personagem com o braço à mostra. Como James ainda não tinha assumido a armadura nas histórias do Homem de Ferro pela Abril, o jeito foi mostrar um braço “branco”, em vez do braço negro do personagem. Portanto, o Homem de Ferro em Guerras Secretas, pela Abril, era Tony Stark, e não James Rhodes.


                                                                                                                                                                          Durante a saga, após o seu uniforme ser rasgado em batalha, o Homem-Aranha adquiriu um uniforme novo. A História com o novo uniforme foi publicada na edição nº 08 de Guerras Secretas. E a mudança no visual traria muitos problemas para o Homem-Aranha no futuro de suas aventuras. Na edição nº 09, Reed Richards, com uma ajuda de Galactus, tem a oportunidade de ver uma imagem de sua esposa Sue, e do seu filho Franklin. Porém, o desenho foi refeito. O motivo era que Sue estava grávida. Como as histórias estavam adiantadas, a Abril editou a imagem tirando a “barriga de grávida”, mostrando a personagem como se não estivesse esperando um bebê.

A edição final de nº 12 apresentaria uma grande surpresa. Com o fim da saga, todos os personagens retornaram à Terra. E a Abril se viu com um grande dilema nas mãos. As histórias do Homem-Aranha em sua revista ainda estavam longe das Guerras Secretas, assim como todo o resto do Universo Marvel.  E com o fim da saga, o Homem-Aranha teria sua sequência trajando o novo uniforme. A decisão editorial tomada com o final da saga, muito corajosa, diga-se de passagem, foi simplesmente “anular” essas novidades. Para isso, foi inventada uma página inteira, criada pela própria Abril, e incorporada à história. Tempestade voltaria a ter o seu antigo uniforme e o seu antigo visual.  O Professor-X voltaria para sua cadeira de rodas, e o Homem-Aranha, ao invés do seu uniforme negro, retornaria com o seu uniforme clássico, o azul e vermelho.  Assim, Guerras Secretas teria um final totalmente diferente em relação ao que foi publicado no resto do mundo. Apenas para adequar as histórias, e não ter conflitos entre elas no andamento das publicações.



“O final foi modificado, pela mesma razão que foi modificado em todas as outras edições de Guerras Secretas. Nós decidimos fazer uma história fechada, que não interferisse no universo Marvel, como estava sendo publicado. Nós oferecemos ao leitor uma aventura fechada em 12 partes, e isso cumpriu o objetivo da minissérie, que era vender os brinquedos”, assinala o editor da época, Jotapê. 
A Abril possuía os direitos das publicações e tinha o poder de escolher qualquer material da Marvel. Mas a Abril não publicava tudo que saía nos EUA. Principalmente histórias menores ou irrelevantes. É aí que a RGE entraria novamente, com alguns “pequenos” materiais.               Qualquer coisa que a Abril não quisesse publicar poderia ser publicado por outra editora.
Aproveitando o desinteresse da Abril, a RGE publicaria dois títulos que a Marvel lançou em parceria com a empresa de brinquedos americana Hasbro. Eram as revistas “Transformers” e “Comandos em Ação”.                                                                                                                                                     
Como eram títulos fora do mundo dos super-heróis, a Abril não se importou em publicar.  Mas por um descuido, a editora não percebeu que, na revista dos Transformers, em uma determinada edição, o Homem-Aranha seria um dos convidados a participar de uma das histórias. A publicação de Transformers pela RGE teve sua estreia em novembro de 1985. E nessa edição de Transformers, publicada em janeiro de 1986, foi apresentada uma história em que o Homem-Aranha se encontra com os Autobots. Contudo, o grande problema disso era que essa história é posterior aos acontecimentos da saga Guerras Secretas.  E na capa da edição nº 03, o Homem-Aranha está com o seu uniforme negro. No Brasil, praticamente ninguém sabia desse “bendito” uniforme.  Boa parte dos leitores estranharam o Homem-Aranha negro.       



                                                                                                                                                                   Para completar, essa edição foi publicada 10 meses antes dos fatos apresentados em Guerras Secretas nº 08, de novembro de 1986, quando foi mostrada a primeira aparição do uniforme negro. Como já não bastavam os problemas em relação à grande confusão que foram as Guerras Secretas no Brasil, a Abril assistiu ao Homem-Aranha ser publicado por outra editora, que não tinha mais os direitos dos personagens do Universo Marvel tradicional – e ainda por cima, mostrando em primeira mão o novo uniforme no Brasil. Se a RGE guardou algum ressentimento quando perdeu os direitos para a Abril, em 1983, a editora se sentiria vingada naquele momento.

Com o término da minissérie, a redação da Abril assistiu todo o esforço feito em alinhar a complexa cronologia Marvel ser seriamente prejudicado.    Com a obrigação contratual, e a necessidade em publicar a saga dois anos antes do tempo, a redação de super-heróis da Abril se viu em uma encruzilhada.  Muitos leitores reclamaram sobre essa atitude nas seções de cartas. As cobranças eram constantes e durante os dois anos seguintes, a Abril teve de se virar com os acontecimentos mostrados em Guerras Secretas. Principalmente com os personagens protagonistas, como Homem-Aranha, Quarteto Fantástico e os Vingadores, que estavam totalmente deslocados em função da saga.  Depois de Guerras Secretas, Hélcio de Carvalho deixaria a Abril para montar a empresa “Art & Comics”, que serviria para dar suporte administrativo às diversas editoras no Brasil. Quem assumiu o seu lugar foi o editor Sergio Figueiredo, que chegava para resolver um problema que seria inevitável: arrumar a cronologia Marvel pós Guerras Secretas.

“Quando entrei, em 1987, a minissérie Guerras Secretas já havia sido publicada pela Abril, que, por sinal, poderia ter segurado a publicação. Não havia pressão para acelerar a cronologia, pois o Brasil era um país muito mais fechado. Poucos leitores tinham acesso aos importados, não havia internet, quase ninguém sabia o que acontecia lá fora. Hoje em dia é inconcebível pensar nisso, mas até o início dos anos 1990, podíamos ficar com quatro anos de defasagem dos Estados Unidos e não havia problema. Mas então por que a Abril lançou a série quase junto com os americanos? Porque havia um pressão dos vendedores da linha de brinquedos, inspirada nos quadrinhos. Nos EUA, a ação tinha dado muito certo e eles queriam replicá-la no Brasil. Para não arrebentar a cronologia, Jotapê propôs alterações, como, por exemplo, o Aranha voltar ao normal quando acabasse a saga. Tudo bem, mas aí, na minha vez, veio a “cobrança da fatura”. Tivemos então que abrir o jogo com o leitor. Sinceramente, já não me lembro o que explicamos à época, mas fácil não foi”, complementa o editor Sérgio Figueiredo.

A explicação dada na época pelos editores para a publicação prematura de Guerras Secretas foi que a saga publicada antes do tempo pertencia a uma REALIDADE ALTERNATIVA.    Ou seja, o fim inventado pela Abril corresponde à outra realidade (que só existiu no Brasil). Mas isso só valeu quando a Abril alcançou o período pós Guerras Secretas, como pôde ser comprovado na seção de cartas das revistas O Homem-Aranha nº 71 e X-Men nº 10. Antes de alcançar o período, a saga era tratada normalmente, como se não tivesse nenhuma alteração na história. Como Sérgio Figueiredo comentou em sua vez, a cobrança da fatura chegou e junto com a fatura, uma enxurrada de cartas dos leitores reclamando sobre as alterações.



Durante a saga Guerras Secretas, as séries nas revistas mensais continuaram, até o momento em que todo o Universo Marvel se alinhasse com Guerras Secretas e finalmente, chegasse ao período certo, alinhando todos os personagens. Um resumo da saga foi publicado em Capitão América nº 119, e serviu como um ponto de partida para situar os leitores. Os fatos omitidos na primeira vez foram publicados nesse resumo.  Esse resumo serviu como um “pontapé inicial”, e essa versão é considerada pala Abril como a que realmente vale.                                                                                                                                                                     
Mesmo com toda a confusão que foi Guerras Secretas, a Abril teve um ótimo retorno com a minissérie, ampliando a linha dos heróis Marvel, e inaugurando uma nova fase, com edições especiais e publicações com acabamento gráfico mais caprichado. A Abril expandiu sua linha com diversos materiais em formato de minissérie, e em “Edições de Luxo”, que nos anos seguintes invadiram as bancas de todo o país.

Alexandre Morgado

Alexandre Morgado é cartorário do 15° Tabelionato de São Paulo. É também autor do livro "Marvel Comics - A Trajetória da casa das ideias do Brasil", livro que narra a história da Marvel em nosso país, publicado em 2017 pela Editora Laços. O autor possui um acerco gigante de HQs, principalmente com material da Marvel Comics. E seu primeiro texto nessa nova coluna será sobre as confusões criadas entre os diferentes 'Capitães Marvel' nos primórdios das publicações no Brasil.


comments powered by Disqus