domingo, 18 de setembro de 2022

Grandes histórias Marvel no Brasil: O motivo dos cortes e mudanças nas revistas da Editora Abril


 POR QUE EU ENTENDO E ACEITO OS CORTES FEITOS PELA EDITORA ABRIL?

Por Alexandre Morgado

O ano era 1967, a Ebal tinha acabado de trazer o Universo Marvel ao Brasil. Eram os “Super-heróis Shell” com a incrível propaganda de divulgação entre a editora e os postos de gasolina. As novidades com os leitores brasileiros eram: Hulk, Homem de Ferro e Thor. Namor e o Capitão América já eram mais populares entre os leitores, pois já haviam sido publicados no passado. Esses seriam os cinco primeiros com a era Marvel no Brasil. Depois a Ebal trouxe o Quarteto Fantástico, Demolidor e o Homem-Aranha. Esse último o campeão de vendas da Ebal. Como vocês sabem, a Ebal não tinha exclusividade com toda a Marvel. Os personagens que a editora não quis publicar, ficaram disponíveis para outras editoras. E foi isso que aconteceu. A “GEP” de Miguel Penteado publicou os X-Men, Capitão Marvel e o Surfista Prateado. A “Trieste” trouxe o agente, Nick Fury. A “Miname & Cunha” publicou; Conan, o Bárbaro e o Dr. Estranho com o nome de Dr. Mistério. A “Paladino” por sua vez atacou com Ka-Zar, a “Saber” com o Túmulo do Drácula, a “Gorrion” publicou Shanna e Luke Cage e a “Roval” trouxe; Kull, o Conquistador com o nome Koll. E no meio disso tudo a “GEA” em 1972, pegou alguns personagens que estavam com a Ebal, publicando novas revistas que duraram pouco tempo. Pois bem, tudo isso aconteceu entre 1967 a 1973, ou seja, em apenas cinco anos, a era Marvel estava nas mãos de todas essas editoras. Nessa lista podemos incluir ainda a “Kultus” que publicou uma edição de Ka-Zar e a “Graúna” que publicou Conan com o nome de Hartan. 

Foi aí, que em 1975, diretores da Bloch foram até ao escritório da Marvel com um contrato. Em 1975, a Bloch tornou-se a única editora até hoje, a ter um contrato exclusivo no Brasil entre 1975 a 1979. Infelizmente, a Bloch acabou fazendo um trabalho ruim por aqui. E o contrato exclusivo acabou sendo cancelado. E foi quando surgiu a “RGE” de Roberto Marinho. Após a Bloch, a RGE publicou o Homem-Aranha, Hulk, X-Men, Quarteto Fantástico e mais alguns, como Mulher-Aranha, Mulher-Hulk, Nova e Rom. Os demais, ficariam esquecido por alguns meses. E foi nesse contexto que a Editora Abril, enfim, acabaria publicando a outra parte do Universo Marvel. A princípio o que sobrou para a Abril foram os personagens: Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Surfista Prateado, Punho de Ferro, Mestre do Kung Fu e Drácula.

Entre 1979 e 1982, a Marvel ficou dividida entre essas duas editoras. E é aqui que as coisas começam a entrar no contexto do título dessa matéria. A RGE bem que tentou, mas faltou foco no que seria a complexa cronologia do Universo Marvel.  Analisando pelo lado do empreendedorismo, a RGE cometeu o mesmo erro da Ebal em não ficar com todos os personagens. “A RGE não teve visão editorial para perceber a dimensão do Universo Marvel. Raciocinou sempre em termos de vendas, com foco no produto. Errou sim, ao não ficar com todos os personagens”, lamenta o editor do período da RGE, Felipe Ferreira que ainda comenta:

 “Naquela época, as revistas eram tratadas isoladamente, cada uma em sua sequência. Não havia preocupação de ajustar as cronologias dos personagens entre si. A ideia do ‘Universo Marvel’ ainda era incipiente”, comenta. Felipe Ferreira, prestava os seus serviços como arte-finalista para a RGE desde o início da década de 1970. Depois se tornou editor de quadrinhos e mais tarde, diretor da divisão Infantojuvenil da Editora. Mesmo com toda a experiência dentro da editora, Felipe não conhecia os personagens que viria a editar. “Quando subeditor, a RGE negociou a publicação dos personagens Marvel. Publicamos o que havia sido decidido na negociação. Eu não tinha nenhum conhecimento prévio dos personagens Marvel, a não ser pelas animações da televisão. Eu não lia as edições na Ebal e na Bloch”, revela.



Na Abril, o responsável por iniciar o comando da linha editorial da Marvel foi o editor Hélcio de Carvalho, que já era leitor e grande fã dos personagens. “Quando a Abril pegou parte dos personagens Marvel, eu fui convidado a editar aquelas revistas (que ninguém ali conhecia) e me tornei editor. Antes da RGE, a Bloch estava publicando a Marvel e fazendo um PÉSSIMO trabalho. Decepcionada, a Marvel decidiu não renovar o contrato e encontrar outra editora no Brasil. A Abril não sabia exatamente como publicá-los e me convidou para organizar as coisas, sabendo do meu interesse e conhecimento sobre aquela linha de quadrinhos”, comenta. Hélcio de Carvalho.

Desde a Ebal, com exceção de Ota Assunção, ninguém que havia trabalhado com a Marvel no Brasil, sabia ou entendia as conexões entre os personagens. E é quando um jovem chamado; João Paulo Lian Branco Martins, mais conhecido em todo universo como “Jotapê”, surgiu para interromper esse obscuro legado. Aos 19 anos, Jotapê, chegava à Divisão de Quadrinhos Infantojuvenis da Editora Abril em 1979. O próprio Jotapê recorda sobre aquele período. “Eu leio gibis desde os sete anos. E comecei a colecioná-los aos 13. Em 1979, aos 19 anos, eu tinha todas as revistas Marvel publicadas no Brasil. Comprava todos os gibis americanos que a Livraria Siciliano importava quinzenalmente e mesmo sendo uma fração do que a DC Comics e a Marvel publicaram nos Estados Unidos, eu tinha uma noção plena do histórico das duas editoras. Para tanto, eu colhia informações das notas dos editores nas páginas das aventuras, lia seções de cartas, editoriais do Stan Lee, expedientes e as relações de títulos mensais publicados. Em suma, até aquele momento, eu tinha um vasto e completo conhecimento.

 Certo dia da primeira semana de julho de 1979, eu apareci na recepção da Divisão Infantojuvenil, na Rua Bela Cintra, bem cedo, oferecendo-me para traduzir histórias da Marvel. Por fim, arranjaram uma pessoa para falar comigo, outro moleque mais velho que eu, Hélcio de Carvalho. O Hélcio tinha sido incumbido de ser o redator das três revistas Marvel da Editora: 'Capitão América', 'Heróis da TV' e 'Tumba de Drácula. Naquele tempo, ninguém da editora botava fé nos gibis da Marvel que a Abril estava publicando. Na Redação de Quadrinhos Nacionais e Estrangeiros (RQNE), não passavam de mais três títulos insignificantes entre mais de 30. Os diretores da Divisão Infantojuvenil da Editora Abril na Rua Bela Cintra não achavam que a Marvel faria sucesso. Muito pelo contrário. Afinal, nos doze anos anteriores, o histórico da Marvel no Brasil tinha sido muito ruim. A crença era a de que os gibis durariam muito pouco. Tinha até um espírito de porco da diretoria, de patente não muito alta, que vinha à redação afirmar, zombeteiro, que aquelas revistinhas não resistiriam nem seis meses. A editora só estava querendo aproveitar o que todos julgavam ser uma moda passageira, um interesse pouco duradouro nos super-heróis, fomentado pela presença na televisão de Homem-Aranha e Hulk, naqueles anos que encerravam a década de 1970”, afirma Jotapê.

Hélcio de Carvalho, além de seus dotes como editor e ‘faz-tudo’, foi contratado como redator das três revistas Marvel, porque, na época, era o único, na editora inteira, que sabia alguma coisa daqueles personagens. Mesmo assim, o que ele sabia era quase nada perto do que Jotapê entendia. Assim, Hélcio acabou passando um teste de tradução. O que ele queria era a colaboração de alguém que entendesse do assunto e soubesse da continuidade dos personagens. O teste era uma história do Capitão América contra o Escorpião, que acabou sendo publicada em "Capitão América" n° 08. Jotapê acabou passando no teste, e a partir daí os dois seriam os nomes por trás da Marvel no Brasil. Entre 1967 até 1979, quando a Abril assumiu, o Universo Marvel passou pelas mãos de quatorze editoras. Achou pouco ou quer mais? Da Ebal até a Abril, foram quatorze editoras, com o Universo Marvel em apenas doze anos da era Marvel no Brasil. Se acrescentarmos as editoras; “O Livreiro”, “Dado”, “Signo” e “Gráfica Novo Mundo”, que publicaram histórias da fase Atlas em 1967, esse número sobe para 18 editoras. Enfim, de qualquer modo, uma salada editorial havia sido criada no Brasil com os heróis de Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko.  

Hélcio e Jotapê formaram uma boa dupla. Os dois eram a “Redação Marvel Abril”. Todas as decisões sobre as revistas Marvel eram de inteira responsabilidade de ambos os editores. Jotapê começaria primeiramente a escolher somente histórias completas, até começar o sincronismo com todo o Universo Marvel. O fato de pegarem “o bonde andando” foi muito complicado para a jovem dupla da Abril. Isso porque era difícil que todos os personagens estivessem com boas histórias simultaneamente. Se o Capitão América, por exemplo, estivesse em uma boa fase, e o Homem de Ferro não, como fazer para publicar suas histórias, se eram do mesmo período? Se a Abril publicasse por publicar, a linha de super-heróis seguiria na mesma linha das editoras anteriores. Pela Ebal nem tanto, mas a Bloch e a RGE falharam com a execução dos personagens Marvel. Se a Abril também falhasse, provavelmente esse seria o fim da Marvel no Brasil!

Após o acordo firmado com a Marvel, a Abril tinha adquirido, sem muito critério, cerca de 1.500 páginas de histórias em quadrinhos na forma de bromuros. As histórias foram incluídas sem preocupação com ordem ou continuidade. Afinal, quem programou as edições não sabia da cronologia dos personagens e nem de sua história editorial. Por exemplo, os novos leitores foram brindados, em HTV 01, com uma história já começada do Punho de Ferro. Ocorre que a revista “Iron Fist 01” não trazia a primeira história do herói, e sim a nona, uma vez que ele havia sido apresentado, antes de ganhar título próprio, meses antes no gibi 'Marvel Premiere', cujas páginas não tinham sido compradas pela Abril. Esse tipo de conhecimento vinha de Jotapê, que acabaria colocando ordem na casa. 

A Abril tinha um bocado de páginas compradas sem critério algum e a incumbência de selecionar, entre elas, o maior número possível de histórias fechadas. A decisão editorial fazia sentido. Afinal, eram publicações novas na Abril, voltadas para um público que ainda deveria ser formado. Nada mais lógico do que iniciar com histórias que tivessem começo, meio e fim, como ditava a tradição da publicação de super-heróis no Brasil. As experiências de 1967 em diante com histórias continuadas da Marvel na Ebal até a RGE não tinham sido suficientes para criar o gosto por capítulos entre os leitores tradicionais. Se por um lado a unificação do Universo Marvel tinha virado uma prioridade dentro da editora, por outro, a Abril tomaria algumas atitudes que, para alguns leitores, seriam uma afronta. Por isso, foi criada a famigerada “Cronologia Marvel-Abril”. Uma dessas atitudes feitas pela editora, principalmente para alinhar a cronologia, foi a edição com cortes e mudanças nas histórias originais.

A Abril resolveu que, para unificar o Universo Marvel, a melhor solução seria “cortar e editar” pequenos trechos das histórias. Uma das explicações dadas por Jotapê sobre os cortes e mudanças nas histórias originais foi a seguinte: uma revista Marvel produzida nos Estados Unidos possui 22 páginas por edição. Isso sabendo que lá, cada personagem tem a sua própria revista. No Brasil, seria inviável publicar dessa forma, uma edição para cada um dos personagens. A Bloch até tentou. Publicou uma revista para cada personagem. Mas eram outros tempos. A ideia na Abril era deixar as revistas diversificadas, com o máximo de histórias possíveis por edição. Para aproveitar as 84 páginas das revistas, que eram as 80 do miolo e mais as 4 das capas, a editora, caso optasse por apenas três histórias, ficaria com uma sobra de 14 páginas por revista. Nesse caso, seria necessário usar esse espaço com intermináveis seções de cartas, desenhos dos leitores e outros diversos tapa-buracos. Caso fossem publicadas quatro histórias, como acabou sendo feito, o número subiria para 88 páginas. 

Por isso, para oferecer mais, e para poder ter quatro, ao invés de três histórias por edição e ficar dentro do limite de páginas, a dupla Hélcio e Jotapê entenderam que seria melhor cortar alguns pequenos trechos das histórias originais. A princípio, esses cortes não foram percebidos pelos leitores. Em uma época sem internet e com o acesso aos originais americanos de forma escassa, levaria muito tempo até que os leitores e colecionadores percebessem as histórias editadas. Somente algum tempo depois, com as edições originais chegando em maior escala ao Brasil, no final dos anos 1980, que seria possível saber quais partes das histórias foram cortadas. Mas de qualquer forma, a Abril conseguiu o que queria: organizar as histórias e trazer de volta o interesse dos leitores para os gibis de super-heróis.

 “Na época, algo tinha de ser feito para que uma cronologia coesa pudesse ser estabelecida no Brasil, e a única forma que encontrei foi escolher um ponto de partida e ir eliminando histórias menos importantes ou ruins, ou então modificar páginas, para não estragar surpresas ou atrapalhar a sequência lógica de eventos em curso. Estávamos vivendo um período de grandes crises econômicas no país, e o dinheiro estava extremamente curto no bolso de todos. O leitor estava muito seletivo. Por isso, era vital sempre oferecer o melhor material possível, para que ele continuasse comprando as publicações. Assim, selecionamos, e muito, o material a ser publicado. Sequências ruins, sem relevância, com roteiro e arte pobres, eram cortadas sem dó. Dava um trabalho imenso fazer isso, mas conseguimos realizar o que muitos julgavam impossível – estabelecer a cronologia brasileira, publicando os personagens de forma ordenada -, os mesmos que tinham sido publicados sem qualquer critério, ao longo de tantos anos”, comenta o editor Hélcio de Carvalho. “Com isso, a gente racionalizou a compra de material. Desde 1980, a editora só comprava o que queria publicar. E assim, as revistas estavam sendo planejadas com mais de um ano de antecedência”, comenta Jotapê. 

Vale ressaltar que as vendas com a Marvel foram as maiores até momento. Títulos como; Homem-Aranha, Superaventuras Marvel e A Espada Selvagem de Conan, passavam dos 100 mil exemplares ao mês. Um verdadeiro fenômeno, um verdadeiro sucesso. Durante os anos em que a Abril publicou os personagens Marvel nos formatinhos, a maioria das histórias sofreram cortes e alterações em suas estruturas. Os cortes feitos pela Abril eram práticas comuns, e durariam até o final dos formatinhos, antes de mudarem para a linha Premium, em 2000. 



Os cortes eram muito bem feitos. Ninguém percebia. Quando me dei conta disso, fique surpreso – no sentido de, por que essa imagem não estava na história publicada anteriormente? Depois de pesquisar a história da Marvel no Brasil, e analisar o motivo de tantas editoras, eu consigo entender todo o “malabarismo” criado por Hélcio e Jotapê. Ambos salvaram a marca, criaram e formaram uma geração de leitores e ajudaram a estabelecer uma nova ordem editorial. Não à toa que a Abril ainda é a recordista com a Marvel no Brasil. Desse ponto polêmico, eu faço apenas uma ressalva negativa, com a série “Guerras Secretas”, assunto que já comentei aqui. Todo sacrifício tem um preço, e o trabalho da Abril com a Marvel fez com que a editora estabelecesse a marca em nosso país. Caso a Abril não tivesse dado certo, uma frase surge em minha mente: o que aconteceria se a Abril tivesse falhado com a Marvel? Provavelmente eu não estaria aqui para escrever essa matéria. Isso com toda a certeza.


Alexandre Morgado

Alexandre Morgado é cartorário do 15° Tabelionato de São Paulo. É também autor do livro Marvel Comics - A Trajetória da Casa das Ideias do Brasil, livro que narra a história da Marvel em nosso país, relançado em 2021. O autor possui um acervo gigante de HQs, principalmente com material da Marvel Comics.

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