domingo, 29 de janeiro de 2023

Grandes Histórias Marvel no Brasil: Nos bastidores do Dicionário Marvel.


Um dos itens colecionáveis mais importantes produzidos pela Abril.

Em 1979, quando o Universo Marvel foi fatiado entre a Abril e a RGE, teve início uma queda de braço. A disputa era pela preferência dos leitores e o prêmio, o sucesso de vendas. A editora de Roberto Marinho tinha ficado com o filet mignon da época: Hulk, Homem-Aranha e outras joias da coroa de Stan Lee. À família Civita, restaram heróis não tão afamados. No entanto, pouco a pouco, com arranjos na complexa continuidade Marvel -- hoje condenados por muitos e aplaudidos por outro tanto --, a casa do Pato Donald ganhou a parada. Em 1983, tornou-se a editora que reinaria absoluta sobre a Marvel no Brasil até 2002.

Mesmo assim, como seguro morreu de velho, para manter aceso o interesse dos fãs e ainda conquistar novos leitores, o editor Hélcio de Carvalho e o tradutor/consultor Jotapê Martins sempre discutiam propostas que pudessem fidelizar ainda mais seu público. Com o pinga-pinga que tinha caracterizado a publicação dos personagens Marvel por várias empresas no Brasil, os editores da Abril acreditavam que faltava muito conhecimento sobre os heróis e vilões da Marvel. Quanto menos conhecidos o fulano ou sicrano, maior era a desorientação do leitor. E eventos importantes na vida dos graúdos eram verdadeiros mistérios até para os consumidores ávidos. 

“Eu e o Hélcio vivíamos debatendo ideias”, conta Jotapê. “O Dicionário Marvel pode ter brotado de uma dessas conversas. Eu me lembro que havia muita informação sobre o Universo Marvel que os leitores não tinham. Então, eu e o Hélcio sempre estávamos muito a fim de municiar a garotada desses dados. Essa mesma motivação -- que o Hélcio partilhava comigo -- levou também ao esquema que eu montei de seleção das cartas que chegavam à redação. As que traziam perguntas cujas respostas informassem mais os leitores passaram a ser privilegiadas. Em algum momento, fica evidente, pra quem relê as sessões de cartas, que a qualidade destas e das nossas respostas melhorou muito”.

Foi o próprio Jotapê, com o Hélcio, que desenvolveu as primeiras páginas do Dicionário. Com uma coleção gigante de material importado e valendo-se da própria memória, o consultor deu início às pesquisas necessárias. Ele e o Hélcio, em inúmeras conversas, começaram a biografar e organizar, letra por letra, todos (ou quase todos) os personagens da Casa das Ideias. Assim surgiu, despretensioso, o Dicionário Marvel. Ao fim de cada edição das revistas de super-heróis Abril, páginas, que podiam ser recortadas, passaram a trazer verbetes sobre aquele mundo de aventuras. Nas páginas derradeiras dos gibis Capitão América, Heróis da TV, Superaventuras Marvel, Hulk e Homem-Aranha, os leitores passaram a receber dados sobre habitantes ilustres -- e nem tanto -- do Universo Marvel.


As primeiras páginas do Dicionário foram mais exíguas de informações; os textos, breves e enxutos. Afinal, eram fruto de pesquisas na coleção do Jotapê e ditados -- muitas vezes ao telefone -- pelo tradutor ao Hélcio, que datilografava verbete por verbete, em laudas -- como se requeria na época -- já cuidando de editá-los. Diante dos verbetes que abrilhantavam sequencialmente seus gibis, os leitores começaram a tomar gosto pela coisa e um número substancial deles tratou de colecioná-los separadamente dos gibis. Hoje, essas compilações de páginas são disputadas a tapas e várias centenas de reais. Houve um momento, porém, que o conteúdo do Dicionário mudou muito. A quantidade de texto aumentou, bem como o detalhamento das informações. Ao mesmo tempo, na Redação, o trabalho diminuiu a olhos vistos. Para sorte dos dois jovens editores e pela graça benfazeja de Odin, o pai dos Deuses, a Marvel americana, encabeçada por Jim Shooter, seu editor-chefe na época, tinha tomado uma decisão providencial.

Em 1983, a Casa das Ideias lançou um guia enciclopédico, que detalhava o universo ficcional de suas publicações. A primeira série, de quinze volumes, editados em formato americano, se fez seguir de atualizações esporádicas ao longo dos anos. Chamava-se The Official Handbook of the Marvel Universe (O Manual Oficial do Universo Marvel). “As preces que eu não tinha feito foram atendidas”, gargalha Jotapê. “Bem no comecinho da produção do nosso Dicionário Marvel, os gringos -- movidos talvez pela mesma motivação que a gente -- lançaram um manual oficial centenas de vezes mais completo e aprofundado do que nosso humilde alfarrábio. Foi uma benéfica coincidência ou os deuses das HQs sorriram pra gente. Se você reparar, a partir de um dado momento, os nossos verbetes ficaram mais precisos, detalhados e completos. Era a sapiência “nérdica” do Official Handbook exercendo sua poderosa influência. Eu e minha coleção deixamos de ser as únicas fontes dos verbetes do Hélcio e posteriormente de outros editores das revistas Abril. As conversas telefônicas que se estendiam até de madrugada cessaram, minha privação de sono voltou a se dever apenas aos meus plantões no hospital-escola e a Redação de Quadrinhos Nacionais e Estrangeiros da Editora Abril passou a contar com um manancial de dados muito mais robusto e confiável”.



O Dicionário, apresentava, além dos artistas criadores, as origens de praticamente todos os personagens, dos mais populares, passando pelos vilões, até os coadjuvantes. Também eram alvo de escrutínio os intrigantes pontos geográficos e locais do Universo Marvel, como a “Área Azul da Lua”, a “Montanha de Wundagore”, a “Sala do Perigo” e muitos outros. Durante sua produção, alguns personagens acabaram ficando de fora; tudo decorrente de uma proposta que, de início, se pretendia bem mais modesta do que acabou se tornando. Para resolver essa deficiência e suprir ausências imperdoáveis, ao final da letra Z, foram criados itens como “Outros”, “Apêndice” e “Diversos”.


Histórico de publicação

O Dicionário Marvel teve início em Heróis da TV n° 50 em agosto de 1983 e concluído em O Incrível Hulk nº 27 de setembro de 1985. A coleção totalizou 258 páginas. Para completá-la, o leitor teve de adquirir as 128 revistas mensais da Marvel nesse período. A Abril havia prometido uma capa especial para o Dicionário Marvel, mas até hoje ninguém viu a cor desse acessório. A desfeita acabou frustrando muitos leitores, principalmente aqueles que destacavam as páginas de suas edições. Não foi a primeira e nem a última vez que a redação deixou de cumprir suas promessas. De qualquer modo, a coleção criada pela Abril foi um dos maiores acertos da editora. Sua publicação coincidiu com o momento em que a Casa das Ideias verdadeiramente se tornava popular por aqui. O pequeno manual de heróis ajudou a conferir relevância para um universo ficcional que, até então, não se levava à sério.

Hoje, não é fácil achar todas as páginas, mas também não é impossível. Vários leitores deram um jeito de tornar a obra mais acessível. De um modo simples e bem artesanal, tem gente que, a princípio, xerocava e hoje digitaliza as páginas originais. Com um tantinho de empenho, encontram-se exemplares vendidos por aí, muitos com luxuosas encadernações, cujas capas suprem a falta de palavra da Abril.

Um ponto interessante sobre a produção do Dicionário Marvel é que ele não trouxe custos para a editora. Com os verbetes inseridos nas revistas, não era preciso acrescentar páginas a mais. Apenas subtraía-se uma folha do miolo. Em outras palavras, não eram duas páginas que se ganhavam, eram duas páginas a menos de HQ. “Com o tempo, virou uma dor de cabeça perene pra edição dos títulos”, explica Jotapê. “O Hélcio não via a hora dos verbetes chegarem ao fim. o Dicionário diminuía o espaço pra se publicar quadrinhos. Pra desagrado nosso e dos leitores que hoje nos condenam por cortar trechos das histórias, cada folha com verbetes eram duas páginas de HQs que tinham de dançar”.



O Dicionário Marvel foi publicado em um período de ouro da Abril, uma época em que era muito divertido comprar as revistas. Montar essa coleção fez a alegria de vários fãs. Embora um trabalho modesto, seu resultado foi grandioso. As duas páginas finais de cada edição falam muito daqueles anos mágicos.

E você, possui a coleção completa do Dicionário Marvel?


Alexandre Morgado

Alexandre Morgado é cartorário do 15° Tabelionato de São Paulo. É também autor do livro Marvel Comics - A Trajetória da Casa das Ideias do Brasil, livro que narra a história da Marvel em nosso país, relançado em 2021. O autor possui um acervo gigante de HQs, principalmente com material da Marvel Comics.

Agradecimentos: Esse texto foi escrito com a colaboração de João Paulo Martins , mais conhecido por todos como Jotapê.

comments powered by Disqus