segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Grandes Histórias Marvel do Brasil: A primeira versão da Terra X pela Mythos

Depois da criação do Estúdio Art&Comics, a agência criada por Hélcio de Carvalho se transformou numa editora. O estúdio administrado por Hélcio e Dorival Lopes iria se tornar a Mythos Editora, em 1996. No ano seguinte, a Mythos faria sua estreia no mercado nacional de quadrinhos, publicando desde Hellboy, de Mike Mignola, até os personagens da linha Bonelli italiana, como Tex e Zagor, passando por algumas edições da DC Comics e, claro, com materiais da Marvel Comics. 

Hélcio conta para nós como conseguiu que a Mythos publicasse alguns títulos da Marvel, já que os direitos ainda estavam com a Editora Abril.

“A Abril tinha a primeira opção de escolha em todo o material Marvel. Eu conhecia o Marco Lupoi, diretor de licenciamento da Panini (Itália), que negociava as licenças da Marvel em todo o mundo. Comecei a licenciar títulos menores com ele, nos quais a Abril não tinha interesse. Quando a Marvel adquiriu a pequena Malibu, ela produziu alguns Crossover com os personagens da editora para alavancá-los. Vi ali uma boa oportunidade de lançar personagens Marvel de peso, e consegui os direitos para publicar essas revistas. Quando isso aconteceu, a Abril ficou furiosa! Cortou a Art& Comics como prestadores de serviço e proibiu a Dinap de distribuir títulos Mythos. Ficamos em maus lençóis! Felizmente, a Chinaglia nos acolheu e passamos a distribuir com eles. Foi a melhor coisa que podia ter nos acontecido: cortando o cordão umbilical com a Abril, nos vimos soltos para voar muito mais alto”, recorda.

Alguns dos primeiros materiais da Marvel pela Mythos chegaram às bancas a partir de 1997.            A primeira publicação foi com o “mais misterioso dos X-Men”, o mutante Gambit, com minissérie em duas edições. Depois vieram a minissérie da Vampira, a série Ruinas, Marvel Luz & Sombra, e mais algumas edições distintas.

Mas, de todas as séries publicadas pela Mythos, a que causaria mais polêmica, sem dúvida, foi a minissérie Terra-X, de Alex Ross e Jim Krueger. A saga apresenta um futuro distópico do Universo Marvel, mais ou menos na mesma linha da série O Reino do Amanhã, do próprio Alex Ross, publicado pela DC Comics. Porém, um grande detalhe diferenciava essa série das outras publicadas: a Mythos publicaria Terra X cortando muitas das páginas da série original. E quem seria o responsável pelos cortes? 

“Eu cortei Terra X porque o Hélcio pediu”, lembra Jotapê. “A Mythos não queria publicar aquele tremendo calhamaço. Ele queria publicar com menos páginas (a série com 474 páginas teve mais de 130 páginas cortadas). Hélcio disse: Dá para fazer? Eu disse: claro, é comigo mesmo. Isso foi feito porque o material era muito ruim, com muita “encheção de linguiça”, com muita coisa supérflua. Então eu pude cortar uma quantidade muito grande. E o gibi ficou muito mais interessante em português, com a leitura muito melhor. Tanto que até dava para ler. O original não dava, era insuportável. A não ser que tivéssemos estômagos fortes”. Terra X foi publicado pela Mythos em quatro edições.



O que os editores da Mythos não imaginavam era que a série traria alguns problemas jurídicos para a editora. No segundo semestre de 2001, a Mythos Editora publicou Terra X no formato de minissérie, dividido em quatro partes. Porém, essa versão sofreu um corte de mais de 130 páginas, e entre reações negativas dos leitores e dos sites especializados, ocorreu um fato pouco divulgado, que ganhou ares de lenda urbana: a abertura de um processo junto ao Procon (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor), contra a editora.

O responsável foi o colecionador e pesquisador Nilo Estanislau do Rosário, conhecido como Nikki Nixon, que uma semana após comprar o último exemplar da minissérie, tomou conhecimento dos cortes e como muitos leitores, sentiu-se enganado por ter comprado algo diferente do que era anunciado.

Quase dois anos depois da publicação, vendo que a Mythos não se pronunciou em republicar a obra na íntegra, decidiu entrar com um processo via Procon de Belo Horizonte (MG), se valendo do Código de Defesa do Consumidor. Após a notificação, foi marcada a primeira audiência de conciliação, sem que qualquer representante da editora comparecesse e uma segunda audiência foi marcada. Enquanto isso, Nikki preparou um e-mail, dirigido ao agente de Alex Ross e ao escritório da Marvel Comics, narrando o ocorrido. A resposta obtida de ambos foi a de que eles não poderiam fazer qualquer interferência em questões jurídicas.

No processo, era pedida como reparação, a publicação na íntegra da minissérie, o que foi negado pela editora, alegando inviabilidade técnica para tal, e oferecendo apenas como reparação a devolução do valor pago pelas revistas. Diante da negativa, foi oferecida uma nova proposta de indenização: um exemplar original completo em inglês, mas este também foi negado, pelo receio de que isso criasse jurisprudência para processos futuros, de outros leitores.

Esgotando os recursos junto ao Procon, o processo seguiria para o fórum, onde se fazia necessário o acompanhamento de um advogado, mas na época, Nikki, por estar sem recursos para tal, fez com que o processo parasse e caducasse. Esse foi o protesto de um leitor que se sentiu lesado e que queria apenas ler sua revista, sem cortes.

Hélcio de Carvalho, tem uma outra lembrança desse fato: “Sim, ele moveu um processo, mas perdeu feio. E quase levou um processo nosso de quebra”.


 De qualquer forma, o processo, até onde é conhecido, foi um caso inédito em relação a um leitor reivindicar por uma melhor publicação de uma História em Quadrinhos no Brasil. Esse caso específico não era de conhecimento entre os leitores, e soava até como uma lenda urbana, de fato. O caso só foi descoberto depois de muita investigação e consultas nos sites que hospedam os processos (no caso, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais). Tudo isso levou ao nome do leitor Nikki Nixon, que por ironia do destino, fazia parte da minha rede de amigos do Facebook. Isso tornou possível que o caso viesse a público, deixando definitivamente de ser uma lenda, tornando-se, assim, parte da história. De qualquer forma, a série Terra X voltaria às bancas, anos depois, em um formato luxuosíssimo, publicado na íntegra pela Panini, no ano de 2009.

Independente da polêmica com o processo, a Mythos caminhou bem no andamento de suas publicações. Com as produções das revistas Marvel pela Mythos, a Panini Itália já analisava o trabalho que estava sendo executado. Uma semente já havia sido plantada pela Panini na editora de Hélcio de Carvalho. A Panini Itália, que já licenciava o material da Marvel para diversos países do mundo, estudava a chance de criar uma filial no Brasil – e começaria a considerar a possibilidade de encontrar outros parceiros para editar as revistas da Marvel no país. E assim, a Mythos dava continuidade com todo o universo Marvel em parceria com a Panini a partir de 2002.

 

Edição da Panini. Dessa vez, publicada na íntegra.


Alexandre Morgado

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Alexandre Morgado é cartorário do 15° Tabelionato de São Paulo. É também autor do livro "Marvel Comics - A Trajetória da Casa das Ideias do Brasil", livro que narra a história da Marvel em nosso país, publicado em 2017 pela Editora Laços. O autor possui um acervo gigante de HQs, principalmente com material da Marvel Comics.


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